NOSSAS EXPERIÊNCIAS

19 de dez. de 2011


HISTÓRIAS DE PACIENTES COM CÂNCER DE BOCA E PRÁTICAS

DE FUMO EM ÁREAS RURAIS DO NORDESTE BRASILEIRO

Câncer de boca e práticas de fumo no nordeste brasileiro



Mariana:

“O povo todo da roça fuma”

Mariana tinha uma lesão extensa que comprometia várias
estruturas, além da idade bastante avançada, 80 anos.

Fumava, em média, 10 cachimbos e também alguns cigarros
por dia, tendo iniciado o hábito de fumar aos 10 anos de idade
porque sua mãe solicitava que os filhos acendessem seu cachimbo.

Fala do fumo com um prazer ainda grande:

“O povo todo da roça fuma...fumar é muuuuito bom”,
e refere não saber da relação dele com a neoplasia.
Fumou até a data do diagnóstico da primeira lesão
cancerígena na boca, em 2001.

Mariana nasceu no município de Quixeré no ano de 1924,
é viúva, teve oito irmãos, cinco homens e três mulheres,era
a caçula entre eles.
Seus pais eram agricultores e toda a família participava
do trabalho na terra.
Quando completou 8 anos de idade foi ajudar na roça,
plantando feijão e mandioca, e, portanto, nunca teve
muito tempo para brincar.

Sempre morou na sua terra natal, veio para Fortaleza
quando da necessidade de realizar sua primeira cirurgia,
não sendo mais possível ficar longe do apoio médico.

Atualmente, habita com a nora, o único filho e netos.
Realizou duas cirurgias: a primeira foi no lábio inferior
e depois fez ressecção de faringe, palato mole com
extensão para amígdala,área retromolar e base de língua.


Elizabete:
“Quando fumava eu me sentia absoluta”
Elizabete realizou cirurgia, em fevereiro de 2001.
Nasceu no município de Russas, tem 57 anos, três filhos,
dois são adotados (colocaram na porta da sua casa),
e o mais novo, de 16 anos, é filho legítimo.
Sobrevive e sustenta dois filhos que ainda moram com ela,
com a pensão deixada pelo marido falecido,de 320 reais.

Elizabete mostra em seu discurso uma história de vida
marcada pelo sofrimento e depressão.
A primeira grande ruptura em sua vida aconteceu com
a separação dos pais, quando, na ocasião, além de ficar
sem o pai,a família começou a passar dificuldades financeiras.
Todos os filhos tiveram que ajudar no sustento da família,
e Elizabete,aos 11 anos,foi trabalhar como doméstica porque,
segundo ela, não tinha o que comer.
Houve uma separação de toda família, e ela relata que, a partir
de então, só problemas aconteceram em sua vida.
Carência,insegurança e medo começaram a permear seu consciente;

Elizabete começou a fumar:
“Quando fumava eu me sentia absoluta.”
Casou-se com um homem mais velho que a acolheu como filha.
Elizabete nunca cultivou,em si mesma, a possibilidade de se manter
sobre as próprias pernas, se sustentando a partir daí na força
do marido e,após seu falecimento,transferiu toda essa dependência
à irmã.
Ela alega um completo desamparo e submissão.
A morte do marido aparece como segunda grande ruptura
em sua vida: ela perde o “chão”, dependia dele para tudo.
Começou a sentir solidão, e seu sofrimento foi arrebatador.
Logo em seguida veio a doença, o câncer de boca que lhe
trouxe mais uma ruptura, nem tanto pelo diagnóstico em si,
mas pela seqüela deixada pela cirurgia que mudou totalmente
a vida de Elizabete.
Ela ficou em casa deitada numa rede chorando durante meses,
até que um dia resolveu se levantar, conseguiu sair de casa
e dizer:
“eu não posso viver assim”.
Ela saiu do processo depressivo, porém continua numa relação
difícilcom as seqüelas.

Francio:
“no mar é bom um cigarrinho”

                                                                                 

Francio é considerado pela família um exemplo de homem,
bom pai, bom marido, um homem bom.
Ele é casado, pai de uma filha de 21 anos, avô de um bebê
de seis meses.
Reside em Aquiraz, com sua esposa, filha e neta.
Tem 65 anos, fumou de 18 até os 61 anos de idade.
O início da prática do fumo se deu no mar, alem de trabalhar
na roça, ele começou a pescar, e,segundo ele, a solidão sugeriu
uma companhia.
O cigarro aparece, então, como um companheiro:

“...no mar é bom umcigarrinho.”

Eu fumava três carteiras por dia.
No normal era uma,mas, bebendo, o caba fica de vez em quando
acendendo um parou de fumar dois anos antes de aparecer os
sintomas do câncer,utilizando um filtro que tira o gosto do cigarro
e portanto facilita a eliminação do hábito (segundo o mesmo).

Procurou o Instituto de Prevenção do Câncer por apresentar
um vermelhão na boca que progrediu com muita dor.
Foi diagnosticado carcinoma espinocelular de assoalho da boca
à direita;realizou cirurgia em agosto de 2003
(pelveglossectomia e esvaziamento cervical supra-omoióideo
à direita).

Josué:
“Sempre gostei muito de fumar e beber”

Nasceu em Caucaia, tem 56 anos, é separado, tem três filhas.
É o primeiro filho de uma prole de 11.
Destes, sete são mulheres e quatro homens, apenas um deles
é falecido.
Teve câncer, amputou as duas pernas e ficou por seis anos
convalescendo em uma cama.
Seu pai faleceu aos 92 anos de idade com pneumonia, sua mãe
ainda é viva, lúcida e dinâmica,tendo hoje 79 anos de idade:

“Meu pai era muito trabalhador...
plantava milho, feijão, mandioca... eu que ia vender no centro...
eu sempre trabalhei”.

Josué teve um câncer em estádio avançado, tendo que realizar
uma cirurgia que consistiu na retirada de toda a língua
(glossectomia total).
Esteve, durante seis meses, freqüentando um posto de saúde
próximo à sua casa, sem conseguir obter o diagnóstico correto
de sua doença, tomando benzetacil de dois em dois meses.
Sempre gostou de fumar e beber, fumava cigarro comum e
também o “pé-duro”, que consiste na utilização de fumo de
corda enrolado em palha:

“Quando não tinha o cigarro, eu ficava doidinho”.

Quando descoberto o câncer, as seqüelas, evidentemente,
não foram simples.
Porém no seu discurso caracteriza-se a negação:
Josué prefere dizer que não sente nada, não mudou nada
em sua vida, as funções orais estão normais, apesar de sua
fala ser quase ininteligível e não conseguir engolir nem a saliva
durante nossa conversação.

Ele talvez acredite que a única maneira de ficar seguro é tornando-se
tão forte e invulnerável, tão independente e sem emoção que nada,
nem ninguém, pode atingi-lo.
Cultiva uma dureza que não é mais real que a doçura desamparada
da pessoa submissa, mantém um orgulho óbvio.
Estar doente é estar frágil, não é possível ser frágil para Josué.

A minha infância foi boa...a dificuldade era que, às vezes,tinha
o feijão mas não tinha a carne...tinha o arroz e não tinha feijão.
Mas toda vida tinha o que comer.

                                                                           

O projeto de pesquisa foi apresentado e aprovado pelo
Comitê de Ética da Universidade Estadual do Ceará, na data de
10 de agosto de 2005, sob o número 05173694-2, e os nomes
dos sujeitos, aqui apresentados, são todos fictícios.

Roxane de Alencar Irineu/Andrea Caprara
fonte: www.eean.ufrj.br/revista

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