KETAMINA.
A nova Droga das Festas é um Anestésico para Cavalos
Tiago, um estudante de 23 anos, nunca se esquecerá do jantar em casa de um amigo que se transformou na festa mais caótica da sua vida. Depois do arroz chau-chau, a sobremesa veio numa bandeja e foi cozinhada à sua frente: ketamina, um líquido transparente usado como sedativo de cavalos. "Um amigo tinha arranjado o frasco num veterinário e cozinhou o líquido numa frigideira até ficar em pó", conta Tiago, que já tinha experimentado o fármaco como droga recreativa em festas de música electrónica.

Quando a ketamina ficou pronta a ser inalada, foi servida numa bandeja às cerca de 20 pessoas da festa, todas entre os 18 e os 25 anos. "A maior parte nunca tinha experimentado, nem sequer sabia que aquilo existia", recorda. "Mas este amigo conseguiu convencer toda a gente a consumir." Cinco minutos depois, o tempo que a ketamina demora a fazer efeito por via nasal, muita gente cambaleava pelo corredor do andar das Avenidas Novas, em Lisboa, e entornava cervejas sem querer. "O efeito é como se fosse uma bebedeira psicadélica", diz Tiago, "em doses médias ou altas sentimo-nos descoordenados,
Entre amigos, Tiago refere-se à ketamina como catamina, cata, catarina ou até cavalo. "Oh Catarina, vais dar na catamina?", brinca, como costuma fazer com a namorada de um amigo, também ela consumidora habitual. Em Inglaterra e nos Estados Unidos, a droga ganhou vários nomes, entre eles o de cereais e chocolates: K, Special K, Kit-Kat ou vitamina K.
Na festa chamavam-lhe cata e os efeitos foram sentidos por todos. "A droga que é vendida na rua leva um corte qualquer com Aspegics e outros pós. Esta foi cozinhada ali mesmo, vinha pura e, por isso, era muito forte", conta Tiago. Não se lembra de muitas partes da noite, até porque a ketamina faz com que o "cérebro fique muito desorganizado e desassociado do corpo". Mas de um episódio não se esqueceu: "Quando abri a porta de um quarto muito pequeno, estavam 20 pessoas a dançar a 'Lambada' em cima da cama e da secretária. O meu amigo tinha a bandeja numa mão e um cartão para fazer riscos na outra. Foi o caos."
Ketamina. vs. miau-miau.
A ketamina É cada vez mais procurada em discotecas. Segundo o relatório publicado em Fevereiro pelo Órgão Internacional de Controlo de Estupefacientes (OICE), o tráfico de ketamina está a crescer na Europa, principalmente em Espanha e Inglaterra. Em Portugal não há dados oficiais, mas segundo Paula Andrade, do Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), "há dois anos tivemos registos de consumo". Ao contrário do "miau-miau", um fertilizante de plantas : À ketamina, o IDT distribuiu em 2008 postais gratuitos com informações sobre os efeitos da substância.
Dois jovens britânicos morreram esta semana por consumirem "miau miau". Por cá o que está a dar é "Special K", mas a PSP desconhece
A droga de Madonna.
Na última década, o consumo deste químico triplicou no Reino Unido, tornando-se muito popular junto das classes altas. Não que a droga seja cara e glamourosa, ou não fosse um tranquilizante muito usado em cavalos e também em pessoas com dores agudas. Um grama custa entre 15 e 20 euros, menos de metade do preço da cocaína, mas os seus efeitos são mais pesados.
Em 1998, Madonna confessou à revista "Q" que não percebia porque é que nas discotecas britânicas ainda preferiam consumir ecstasy: "A ketamina é a grande droga aqui [nos EUA]. É como se nadasses para fora do teu corpo sem saber se vais acordar de manhã." Na mesma entrevista, revelou também que o seu álbum "Ray of Light" soaria melhor sob o efeito de drogas.
Em 2006, o consumo de ketamina já era tão preocupante no país, que o Governo Britânico ilegalizou a substância e a sua posse passou a ser punida com dois anos de prisão. Em Portugal "só pode ser vendida com receita médica", explica Paula Andrade, do IDT. Fora isso, não há legislação adicional.
Special K.
Joana, 22 anos, estudou dois anos em Londres e foi lá que experimentou a "Special K" com amigos da faculdade. "Devo ter consumido dez vezes no tempo em que lá estive", faz as contas, "mas sempre em doses muito pequenas". Em Portugal nunca mais consumiu, até porque está a acabar o mestrado e tem de "andar mais calminha". "Nunca achei divertido, mas tomava de vez em quando para dançar em festas dubstep [um tipo de música electrónica]."
Há pouco tempo, um amigo dela caiu no "K-Hole", um estado de inconsciência profunda alcançado pelo consumo de grandes quantidades de ketamina, também retratado na música "Special K" dos Placebo. "Foi apanhado pela polícia inglesa e tiraram-lhe a carta de condução. Agora vive com os pais e está a recuperar do vício psicológico."
A droga do Vietname.
Lucindo Ormonde, director do serviço de anestesiologia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, considera a ketamina "o fármaco ideal num cenário de catástrofe". A substância, desenvolvida em 1962 como um anestésico dissociativo (que separa a mente do corpo), foi muito usada na guerra do Vietname, antes de ser usada para fins veterinários.
Inalada como droga alucinogénia pode conduzir a "problemas físicos e mentais profundos", explica o médico. Alucinações, alterações de visão, falta de ar, amnésia, dificuldade em controlar os movimentos fazem parte da lista. "O consumo inapropriado deste fármaco misturado com álcool pode também causar overdose."
No hospital, não tem conhecimento do desaparecimento de frascos de ketamina para venda ilícita: "Mas estas coisas não acontecem nos hospitais. O mercado negro é que deve andar fluorescente com isso."
Tráfico em Portugal.
O relatório anual do OICE refere a multiplicação de sites de venda ilícita de ketamina, sobretudo na Ásia, onde os maiores consumidores têm entre 14 e 25 anos. Em Portugal, segundo o gabinete de imprensa da PSP, "não está registada qualquer apreensão da droga e a PSP desconhece a sua utilização". A verdade é que existe.
"É mais difícil de arranjar do que MD [ecstasy] ou coca", diz Diogo, 24 anos, baterista. "Mas arranja-se. Tinha de percorrer muitos contactos e falar com muitas pessoas com antecedência se quisesse para uma festa." A primeira vez que consumiu foi em casa, num jogo de poker entre amigos. "Um deles tinha. Dei um risco mas não bateu. Depois alguém entornou no tapete de poker e tivemos de cheirar até aquilo sair", conta. "Quis levantar-me mas já não consegui, não sentia as pernas nem os braços, aquilo é um bocado delirante."
Ao todo, Diogo consumiu ketamina três vezes, duas delas em festas trance. Tiago também experimentou pela primeira vez numa festa ao ar livre há 3 anos. "Estava com um amigo que na altura traficava e tinha bastantes gramas para vender", recorda. "Foi a droga que consumimos mais, mas também misturámos MD, speed e ácido... um grande cocktail químico."
Os nomes usados nesta reportagem são fictícios
Fonte Clara Silva, Março de 2010.
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Abuso de droga para cavalo faz britânico perder a bexiga
Christopher Francis, 22 anos, desenvolveu infecção que o obrigou ter a bexiga retirada
Uma grande cicatriz que passa pelo meio da barriga do britânico Christopher Francis, 22 anos, é uma lembrança permanente que ele carrega sobre as consequências do abuso no uso de drogas.
O consumo constante de ketamina, droga comumente usada como tranquilizante para cavalos, levou Francis a desenvolver uma grave infecção que o obrigou a ter a bexiga retirada e substituída por um órgão artificial.
O jovem, que cumpre hoje uma pena de prisão em regime semi-aberto por tráfico de drogas, dá palestras em escolas para alertar sobre os perigos das drogas e mostrar que eles vão além da ameaça da cadeia.
"As pessoas não têm ideia do efeito que isso (o consumo de ketamina) tem. Ela rapidamente estraga sua saúde", afirma ele em entrevista à BBC.
Christopher Francis conta que começou a consumir a ketamina "cheirando umas poucas linhas" e que rapidamente foi aumentando a quantidade consumida, conforme sua tolerância à droga ia aumentando.
Com o tempo, ele foi sentindo os efeitos do consumo da ketamina sobre sua saúde. "Começou com câimbras no estômago e dificuldade para urinar" conta.
"Aí eu cheirava mais para tentar me livrar das dores, mas essa era a razão pela qual estavam ali originalmente", diz.
Com o tempo, ele conta que passou a urinar sangue e pus. "Ficava na cama me contorcendo de dor e não tinha nada que pudesse fazer. A única maneira de fazer a dor passar era cheirando mais", diz.
O consumo da droga provocou a corrosão da cartilagem de seu nariz, mas essa não foi a pior consequência da ketamina, para Francis. Os danos provocados pela droga em seu sistema urinário foi tamanho que ele teve que ter sua bexiga retirada.
Por quase um ano, entre os 18 e os 19 anos, ele teve sua urina coletada em uma bolsa ligada ao corpo. "Não é a melhor das coisas para um garoto dessa idade, que está tentando conquistar as garotas, ter uma bolsa de urina entre suas pernas", observa.
Ele comenta que o problema lhe causou várias situações de constrangimento, especialmente quando a bolsa vazava. "Em algumas situações me vi num grupo de 5 ou 6 amigos e de repente tinha minhas calças molhadas. Não é uma situação muito legal, é constrangedor", diz.
Para Francis, as autoridades precisam começar a agir para conter o aumento no consumo de ketamina.
Mortes.
Relata o Médico Dan Wood
Além dos problemas na bexiga, relatados por muitos dos usuários da droga, Wood afirma que também são registrados com frequência problemas renais e no fígado.
As autoridades britânicas também alertam para um crescente número de mortes ligadas ao consumo de ketamina - em sua maioria, provocadas por acidentes.
No início do ano, Louise Cattell, 21 anos, morreu afogada em uma banheira após consumir a droga. A morte de Cattell levou sua mãe, Vicky Unwin, a promover campanhas para alertar sobre os perigos do consumo de ketamina.
"Alguns dos melhores amigos da Louise ainda usam ketamina", diz Vicky. "Eu fico pasma com isso, porque eles a amavam e viram como ela morreu", afirma.
Fonte: Médico Dan Wood, professor da University College London.