Páginas de Uma Memória: Carandiru.
Aleluia, Claudinho, Professor Amauri, Twin, Daniel, Favela, Lenno, Manoel, Edivaldo. Os personagens eram muitos, havia 7.500 a certa altura. "Eu conheço cada buraco, cada pedaço de cimento queimado", disse Sérgio Zeppelin, em seu depoimento. Tudo foi pelos ares recentemente, mas as histórias e os documentos finais da epopéia da Casa de Detenção, o lendário Carandiru, voltam à tona com o lançamento de Aqui Dentro - Páginas de Uma Memória: Carandiru, um trabalho conjunto de Maureen e Sophia Bisilliat, André Caramante e João Wainer, lançamento da Imprensa Oficial do Estado e o Memorial da América Latina. O livro tem 260 páginas e custa R$ 60,00.
"Eu passava de metrô por ali e dizia: um dia vou trabalhar lá dentro", conta Sophia, que teve um irmão preso quando era adolescente. "Tinha vontade de fazer algo por eles. Se um dia me pedirem para voltar, eu volto", afirma.
Sophia adotou o Carandiru e tornou-se uma espécie de madrinha da comunidade carcerária, uma Rita Cadillac que nunca precisou rebolar. Ela chegou a organizar um desfile de modas com travestis, trilha de Roberto Carlos e modelos de Marcelo Sommer, no Pavilhão 6. Quando ela soube que o presídio ia ser desativado, reuniu-se com uma equipe para começar o planejamento desse trabalho, que consiste em um apanhado de fotos e depoimentos de presos (mais de 70 horas de conversas), diretores, antigos funcionários, voluntários da igreja e da medicina.
O retrato que emerge em Aqui Dentro não é o clichê do presídio, o caos e a desonra, a terra de ninguém. Na fotos de João Wainer e nos stills de Maureen Bisilliat surgem quartos extremamente arrumados, oratórios e demonstrações de fé, uma rotina de trabalho e de improvisação.
"Agora, está todo mundo em pânico: Bush pra cá, o Bin Laden está lá. A fome tá aí, a prostituição também, o assassino também, o assalto, ninguém vai no mercado sozinho, está ficando doido, só não está doido o povo de Deus", declarou Aleluia, um dos presos fervorosamente convertidos à religião.
A seleção de personagens, segundo ela conta, obedeceu a esse critério: a de escolher pessoas que tivessem uma determinada função ou cumprisse certo papel na Detenção. Daniel, por exemplo, era "piloto" (um chefe de pavilhão, espécie de homem forte da hierarquia local). O Professor Amauri era um mestre-escola, um detento que dedicou a vida a dar aulas aos companheiros.
Com a "diáspora" dos habitantes da Detenção para outros presídios do Estado e a demolição dos pavilhões, poder-se-ia pensar que a história acabou. Não só não terminou, como algumas relações se mantêm. Na semana passada, Sophia foi convidada a registrar uma première de um cantor de rap, no Guacuri. Os astros eram gente como Racionais MC"s. Ela era a única "de fora" no evento. "Quando ele estava no Carandiru, dizia que seu sonho era sair e fazer um show. Quando fez o show, me convidou. Ficou meu amigo, é um cara com quem eu posso contar", ela diz.
Em tempo: nem Sophia nem Maureen Bisilliat, mentoras do projeto, gostam de Carandiru, de Hector Babenco. "Se afasta muito do que foi de verdade. Tudo, os personagens. Gostei da direção de arte, é muito bonita, mas no geral é muito distante da realidade de lá de dentro. Não me tocou", diz Sophia.
"Não é gostei ou não gostei. Acho que é um filme corajoso, mas não me deixou marcas. O que eu acho é que ele abriu o Carandiru ficcionalmente para a periferia. E por que não?", diz Maureen Bisilliat.
"Ao trabalhar com os presos, num lugar onde todas as questões da sociedade não resolvidas são cristalizadas, a gente percebe que os que lá estão perderam a fé em cada um de nós. Eu sou cristão e venho me colocar à disposição para que, valorizando a pessoa, ela possa acreditar de novo e participar numa caminhada de solidariedade, para um futuro melhor. Se não receberem essa mensagem, se não tiverem essa experiência, vai ter cada vez mais violência na sociedade"
Declarou o Padre Gunter, da Pastoral Carcerária.
Declarou o Padre Gunter, da Pastoral Carcerária.
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