NOSSAS EXPERIÊNCIAS

20 de jan. de 2012

Futuro ferido

Cresce o número de denúncias
contra pais que espancam ou
violentam os próprios filhos,
um mal que atinge 500 000
crianças por ano no país
Marcelo Carneiro
Aline tem apenas 7 anos. Aos 6 enfrentou um demorado interrogatório. Sozinha, em depoimento a dois promotores e um juiz de menores do Rio de Janeiro, contou em detalhes como seu pai a dopava com tranqüilizantes e, no banco traseiro de um carro, dava início a uma interminável sessão de sevícias sexuais. Felipe, de 12 anos, ouviu dezenas de vezes sua mãe dizer que queria vê-lo morto. Só acreditou quando, num ataque de fúria, ela tentou asfixiá-lo. Fugiu de casa e hoje vive em um abrigo para menores. Márcio, 8 anos, filho do guarda municipal Valdemir Santos Cerqueira, não conseguiu escapar. Recusou-se a fazer um dever de casa e foi morto a golpes de cano de PVC, que provocaram fraturas em duas vértebras e hematomas nos braços, pernas e costas. Essas três histórias de violência, todas reais, têm um elemento ainda mais aterrador. Seus protagonistas jamais haviam praticado algum crime antes de espancar ou violentar os próprios filhos. São pessoas que, ao menos de longe, chamamos de normais – daquelas que levam as crianças para passear no parque e participam das festinhas da escola. Um deles possuía curso superior e trilhava uma carreira profissional em ascensão.
Agredir uma criança é um ato tão abominável que não encontra tolerância nem mesmo no submundo do crime. Os presídios têm celas especiais para assassinos ou violentadores de menores. Se o agressor tiver um laço de sangue com a vítima, sua chance de sobrevivência na cadeia diminui inapelavelmente. Criminosos desse tipo costumam ser minoria, mas isso não significa que as crianças brasileiras estejam livres de atrocidades cometidas pelo pai, padrasto, tia ou avó. Estatísticas americanas – os Estados Unidos são, de longe, o país que mais produz dados sobre o assunto – indicam que, em todo o mundo, pelo menos 1% da população de crianças e adolescentes de cada país sofre algum tipo de violência doméstica. No Brasil, que tem quase 50 milhões de crianças até 14 anos, isso significa 500.000 casos ao ano. Ou quase um por minuto. O detalhamento desses números reunidos pelas organizações não-governamentais brasileiras (ONGs) de apoio a vítimas de maus-tratos é ainda mais dramático: uma em cada três crianças espancadas tem 5 anos ou menos, muitas delas são recém-nascidas. Estima-se também que, em 70% dos casos, o agressor seja mãe ou pai biológico. O retrato pintado pelas ONGs é assombroso, mas também há exemplos de sobra para mostrar que o uso da força por parte de um adulto contra uma criança indefesa já não encontra a complacência de antigamente. Nos casos relatados no início desta reportagem nenhum dos espancadores ficou impune. Rompendo um muro de silêncio que costuma encobrir o que ocorre dentro de casa, foram denunciados por parentes, amigos e vizinhos e agora respondem na Justiça por seus atos. Em São Paulo, o Laboratório de Estudos da Criança (Lacri), ligado ao departamento de psicologia da Universidade de São Paulo, acaba de concluir um estudo sobre notificações de violência doméstica, com base em denúncias encaminhadas a 78 ONGs de dezesseis Estados brasileiros. O número de registros em 1999 chegou a 6.700. Isso representa treze vezes mais que o apurado três anos antes. No Rio, a Associação Brasileira para Proteção da Infância e Adolescência (Abrapia) recebeu, durante 1998, 1.500 comunicados de maus-tratos contra 3.099 crianças. Em 1990, quando o serviço de notificação da entidade foi inaugurado, essa cifra não chegava a setenta. Em Curitiba foram registradas 23.000 denúncias contra pais agressores nos dois primeiros anos de funcionamento dos conselhos tutelares, criados com a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do Adolescente com a função de receber as denúncias de violência contra crianças.
No fim do ano passado, a Pastoral da Criança do Paraná, ligada à Igreja Católica, também decidiu quebrar o muro do silêncio. Ao lançar a campanha Mutirão pela Paz, treinou e orientou seus 140.000 líderes comunitários em todo o paí+s para identificar todo tipo de abuso contra crianças, da simples negligência aos casos mais graves de violência sexual. Espalhados por 3.000 municípios, os líderes mantêm contatos quase diários com mais de 1 milhão de pais e mães de todas as classes sociais. "O governo, por mais que se esforce, não tem como chegar às famílias, especialmente quando o assunto é a agressão dentro de casa", explica a pediatra Zilda Arns, que há dezesseis anos dirige a pastoral. "Nosso trunfo é o trabalho voluntário, que estabelece uma relação de confiança com as vítimas."
Invasão de privacidade – O crescimento exponencial do número de denúncias contra agressores de crianças inaugura um novo ciclo no país. Até o início da década de 80, a família era intocável inclusive nos comportamentos domésticos mais negativos. Toda crítica sobre como uma pessoa educava os filhos ou tratava seu casamento era encarada como invasão de privacidade. A prática de infligir castigos corporais, também disseminada por outros países, era não apenas tolerada como até mesmo estimulada culturalmente no Brasil. No século XIX, o historiador João Capistrano de Abreu resumia em seis palavras o ambiente que cercava uma típica família brasileira do período colonial: "Pai soturno, mulher submissa, filhos aterrorizados". Fora de casa, o mundo mudou. Com o avanço das liberdades individuais e a projeção dos movimentos feministas, isso começou a ser questionado. No Brasil, a implantação das delegacias de atendimento à mulher deu voz a uma geração de mulheres brutalizadas pelos maridos. Entre os especialistas da área infantil, há a convicção de que algo parecido esteja acontecendo agora em relação aos pais agressores. É claro que crianças, diferentemente de pessoas adultas, precisam de alguém que as ajude a tirar da sombra suas histórias de crueldade. A implantação dos conselhos tutelares pelo governo e a criação de programas de denúncia de abuso por todo o país mostram que essa trilha já foi aberta.
Mas ainda existe muito a ser feito. Convencer uma criança a contar sua história de sofrimento é um trabalho que exige delicadeza, paciência e determinação. Há quem passe toda uma vida escondendo da mãe, dos irmãos, do marido e dos filhos a violência que sofreu ainda na infância. A maioria rompe esse ciclo ao chegar à adolescência, quando o abuso já vem sendo praticado há vários anos. "Passei muito tempo acreditando que meu marido era um verdadeiro pai para a enteada. Só vim a saber o que ele fazia quando minha filha tinha 17 anos. Jamais duvidei dela. As expressões que ele usava quando a violentava eram as mesmas que empregava na nossa intimidade", conta a carioca Vera, executiva do mercado financeiro. (Leia depoimentos, alguns deles com nomes fictícios.) Vera rompeu com o marido e iniciou um tratamento psicoterápico que envolve toda a família, incluindo outros dois filhos.
Nem sempre a criança encontra apoio e proteção. É comum que seu primeiro depoimento seja encarado com desconfiança. "Minha mãe nunca acreditou que eu estivesse sendo assediada, apesar de as minhas irmãs também serem atacadas, muitas vezes com violência. Decidi contar para uma professora. Foi pior. A primeira coisa que ela fez foi alertar meu pai", conta Fabiana Pereira de Andrade, 23 anos, autora do livro Labirintos do Incesto – O Relato de uma Sobrevivente. Vítima de estupro dos 10 aos 17 anos, Fabiana gerou duas filhas e só se livrou do abuso quando, em 1993, seu pai foi preso. Nos hospitais públicos, todos os profissionais são obrigados, desde 1990, a registrar os casos em que há suspeita de espancamento. Não existe, em todo o país, uma cidade brasileira que cumpra integralmente essa lei. Os conselhos tutelares, por exemplo, funcionam precariamente até mesmo nas grandes capitais. "A cada mudança de governo, os conselheiros são trocados, e o trabalho recomeça praticamente do zero", explica Claudio Augusto da Silva, vice-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança.
Em boa parte dos países africanos, a polícia simplesmente ignora as denúncias de maus-tratos a menores. Na Inglaterra, uma pesquisa divulgada no início do ano mostra que metade dos pais britânicos aprova a reintrodução da punição física como método disciplinar nas escolas. Mesmo nos Estados Unidos, que há trinta anos incluíram o combate à violência doméstica infantil como política de saúde pública, as chamadas punições leves ainda não são proibidas. O castigo corporal só veio a ser banido pela primeira vez no mundo em 1979, quando a Suécia aprovou uma lei proibindo que os pais punissem fisicamente os filhos. Atualmente, apenas setes países têm leis semelhantes – Finlândia, Dinamarca, Noruega, Áustria, Chipre, Croácia e Letônia. Nesses lugares, qualquer beliscão pode ser considerado uma agressão indevida. No Brasil, o Código Penal prevê punição somente para o "castigo imoderado", eufemismo que oculta situações em que o agressor perde o controle, causando danos irreparáveis à vítima, que não tem a mínima chance de defesa. Uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz revelou que dos 105 casos de violência doméstica contra crianças registrados em 1990, em dezoito delegacias do Rio de Janeiro, apenas 25 foram transformados em inquérito policial e só um chegou aos tribunais, resultando na absolvição do acusado – trata-se de um dado antigo, mas o único produzido a esse respeito no país. Especialistas no tema estimam que esse cenário tenha melhorado de lá para cá, mas não muito.
O baixo número de pais levados à Justiça torna difícil outra tarefa dos especialistas em violência infantil: a análise do perfil do agressor. Afinal, o que leva alguém a esmurrar, violentar ou torturar psicologicamente o próprio filho? "Em geral, uma criança espancada transforma-se num adulto agressor", afirma o pediatra Lauro Monteiro, presidente da Abrapia, ONG que até o ano passado concentrou a maior parte das denúncias de maus-tratos contra menores no Rio. "Esse problema não é exclusividade de pobres, analfabetos, drogados ou doentes mentais, ainda que a maioria dos casos que chegam à Justiça seja de pessoas das classes menos favorecidas."
A ausência de qualquer distinção de classe social torna a agressão na infância um assunto mais perturbador ainda. Pior: quando o abuso sobe para a metade de cima da pirâmide social, entra em funcionamento uma rede de proteção que normalmente livra da Justiça o agressor e leva as vítimas a consultórios particulares. Felizmente, nem sempre esse modelo é seguido à risca. Instalada em Ipanema, no coração da Zona Sul carioca, a Clínica da Violência, um dos mais conceituados centros de tratamento para crianças vítimas de abuso físico e sexual, é um tormento para pais agressores de classe média para cima. Os laudos da psicanalista Graça Pizá, diretora da clínica, já foram usados no julgamento de cinco homens que tiveram o pátrio poder destituído. Há ainda dezenas de processos em andamento. A clínica atendeu 480 meninos e meninas entre 1996 e 1998. Em 55% dos casos, a vítima sofreu abuso sexual, freqüentemente seguido de violência física. Em 87% das denúncias, descobriu-se que o algoz da criança era o pai biológico. "Nos nossos prontuários de atendimento, percebemos que o agressor é alguém com curso superior", afirma a psicanalista. O fato de gente aparentemente acima de qualquer suspeita ser flagrada brutalizando um inocente e sofrer conseqüências é apenas o início do fim da violência contra crianças. Um bom caminho para acabar com a impunidade.
Com reportagem de Rachel Verano, de Curitiba

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