NOSSAS EXPERIÊNCIAS: Os cinco anos de Lucas

13 de dez. de 2011

Os cinco anos de Lucas

Os cinco anos de Lucas
Quando circula com a mãe pelos shopping centers de São Paulo, o menino Lucas, de 5 anos, consegue chamar a atenção mesmo em meio ao congestionamento humano dos finais de semana. Poderia estar em qualquer comercial infantil, daqueles que mostram crianças irresistivelmente espertas e doces. Encanta vendedoras, faz perguntas e observações desarmantes - seu teste de Q.I. confirma uma inteligência acima da média - e parece um hominho destemido. Até encontrar, por acaso, uma coleguinha de classe da pré-escola, acompanhada dos pais. 'Onde está o seu pai?', pergunta a menina. Lucas se encolhe e, com o olhar, suplica a ajuda da mãe. Sabe que não pode contar que quando saíram de casa, às 10 da manhã, o pai já estava bebendo. 'Ele está dormindo', socorre a mãe. São cúmplices - e náufragos.
Naquele sábado, véspera do feriadão de Tiradentes, quando mãe e filho retornaram a casa, num bairro de classe média de São Paulo, o pai de fato estava dormindo - mas no chão da cozinha, com o cachorro, que detesta, lambendo-lhe o rosto encharcado de cerveja. Prenúncio de um longo fim de semana de descida aos infernos, para toda a família. Lucas, que na semana anterior brilhava de orgulho porque 'o papai não bebe há cinco dias, não é, mamãe?', olha a figura do pai, que adora, em silêncio. Aprendeu a não falar, quando não há o que falar. Aprendeu a se esgueirar em sua própria casa, para não chamar a atenção na hora errada. Sabe que quando o pai acordar provavelmente vai chamar a mamãe de 'vagabunda'. Para a terapeuta, diz que não quer crescer. Pergunta por que o pai xinga a mãe e ela não faz nada. 'Ela também vai me abandonar?' Quando o pai o chamou de 'animal', Lucas escondeu a ferida. Mas, poucos dias depois, pegou vassoura, pá e toda a raiva acumulada e investiu contra as jardineiras compradas com o pai, 'quando ele estava bom', no quintal da casa. 'Papai falou que eu sou um animal, então sou um animal', dizia, aos soluços, enquanto chutava, arrancava e destruía cada girassol, margarida, onze-horas e cebolinha plantados a quatro mãos. Duas semanas mais tarde, nova reviravolta: num dia de felicidade desesperada, Lucas replantou tudo com o pai, que, inesperadamente, 'estava bom'. 'Olha, mamãe', prometeu a criança, radiante, 'vou crescer igual às plantinhas, vou estudar e não vou beber.'
Lucas e sua mãe, a secretária executiva Cleide, de 43 anos, têm as emoções e os nervos lanhados - não sabem se o pai/marido de hoje será 'o bom' ou o bêbado. Cada dia é um dia, não dá para prever. Tem sido assim, de forma progressiva, há cinco anos. O que mudou foram os intervalos entre os surtos de bebedeira - estão ficando cada vez mais curtos. Cleide mantém a convicção de que, se descobrir o motivo, saberá achar o remédio. 'Eu só preciso saber por quê, meu Deus. Qual a explicação, a causa? A gente era tão feliz, ele foi meu primeiro namorado, ele é uma pessoa sensacional, carinhosa e solidária quando não bebe', repete sempre. A idéia de uma separação a seco a atormenta - 'Não é fácil decidir o que fazer, acredite. Quem não vive essa situação pode achar um absurdo eu não levar o meu filho para longe. Mas quem me garante o que vai ser de Lucas, se ele achar que abandonamos o pai dele?'
Na superfície, a casa ainda funciona: Jairo, no papel de chefe da família, sai para o trabalho diariamente; Lucas, o filho único e idolatrado, é bom aluno, faz judô, terapia e natação; Cleide, como tantas outras mães, tem a dupla jornada de quem trabalha fora e cuida de tudo. No seu caso, tudo é tudo. Desde vestir o marido e tentar carregá-lo para a cama até se engalfinhar com o sócio desonesto que se aproveita da situação - alcoólatras são sempre presas dóceis para exploradores e falcatrueiros. Jairo foi esmigalhando seu físico e suas posses - era um pequeno empresário bem-sucedido na área de filtros industriais - e chafurda naquela que os especialistas chamam de 'fase do porco'. Não toma banho, os dentes vão apodrecendo precocemente, sente-se o pior dos homens.
A mãe de Lucas se equilibra num emaranhado de panos quentes com o marido. 'Quando ele bebe muito, evito olhá-lo de frente. Também concordo com todos os seus pontos de vista - mesmo que seja a favor da pena de morte, que abomino.' Sempre que sai com o filho lembra de guardar o comprovante do estacionamento ou de alguma compra para mostrar em casa, se necessário - o ciúme do alcoólatra é corrosivo. Zela para que não falte cerveja - 'Assim ele não bebe coisa mais forte'. Lucas observa tudo, e vai registrando. Rebela-se porque a mãe o proíbe de assistir a três fitas de vídeo seguidas, enquanto o pai, num acesso de bebedeira, pode encomendar uma dúzia de pizzas por telefone e não comer nenhuma inteira. Seis meses atrás, após presenciar uma cena particularmente abusiva e humilhante da mãe, o menino começou a defecar e urinar no chão de sua casa, no sofá, na escola. Passou a usar linguagem abusiva. Está começando a esquecer que alguma vez correu, brincou e bateu bola com o pai. Na semana passada, viu o pai sair para a rua, trôpego, e ser ridicularizado por um grupo de adolescentes do bairro. Observou a cena da janela, calado. Na manhã seguinte, envergonhado, encobriu o rostinho com a camiseta para ir à escola - como um marginal ou bandido que se esconde da televisão. Lucas tem 5 anos de idade. Até hoje jamais convidou um amiguinho para brincar com ele em sua casa. Segundo as estatísticas mundiais, ele tem quatro vezes mais chances de se tornar alcoólatra do que um filho de pai não alcoólatra.

Fonte: Revista Veja

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