O crack, antes usado apenas por
marginais e menores
de rua, agora chega à classe média. Depoimentos
dramáticos dos que conseguiram abandonar o vício
de rua, agora chega à classe média. Depoimentos
dramáticos dos que conseguiram abandonar o vício
Ao chegar ao Brasil, no começo dos anos 90, o crack se tornou um
flagelo entrse tornou um flagelo entre marginais,
mendigos e menores de rua. São esses os personagens que aparecem deitados nas
calçadas, como molambos, nas cracolândias que floresceram em áreas degradadas
das grandes cidades. Como custa pouco, menos de 5 reais a dose, a droga
disseminou-se entre os desvalidos. Agora, a sedução perversa do crack começa a
fazer vítimas também na classe média. O consumo do crack entre a população mais
abastada ainda não transparece nas pesquisas dos órgãos de saúde porque, na
tabulação dos dados, ele está quase sempre na mesma classificação da cocaína,
da qual é uma versão inferior e mais tóxica. Mas, na avaliação dos médicos que
cuidam dos viciados em drogas nos hospitais e clínicas de recuperação, tanto
públicas quanto particulares, não há dúvida de que o crack subiu degraus na
escala social. O contingente de pessoas que usam crack no país ainda é bem
menor do que aquele que usa maconha ou cocaína. Mas as pequenas pedras brancas
têm um efeito tão devastador, e viciam tão rapidamente, que em muitas
instituições já respondem pela maioria das internações de pacientes.
"O crack está por trás de 80% das
nossas internações", diz o psiquiatra Marcelo Machado, do centro Recanto
Paz, em Pernambuco, onde o tratamento de seis meses custa 8 000 reais.
"Estudantes de faculdades particulares, advogados, publicitários e até
médicos são as novas vítimas dessa substância", afirma o médico Luiz
Alberto Chaves de Oliveira, presidente do Conselho de Drogas e Álcool de São
Paulo e diretor da clínica Vitória, em Embu, na Grande São Paulo, que cobra em
média 9.000 reais por mês por uma internação. A seção gaúcha da Organização
Amor-Exigente, uma rede de 500 grupos espalhados pelo país que dá apoio a
famílias de dependentes, contabiliza que, em 2003, o crack representava 25% dos
pedidos de ajuda entre álcool, cocaína e maconha. Hoje, ele está por trás de
73% dos chamados. No Centro Terapêutico Viva, um dos maiores do interior de São
Paulo, localizado em Piedade (14.000 reais por quatro meses de tratamento), os
pacientes devastados pelo crack chegam a 95% dos internos.
O crack é a cocaína em forma de pedra,
feita para fumar em cachimbos. Os traficantes misturam a droga com outras
substâncias, como o bicarbonato de sódio. "Para aumentarem o volume,
adicionam também cal e anestésicos como a lidocaína", informa o delegado Luiz
Carlos Magno, do Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc) de São
Paulo. A mistura é fervida e depois filtrada, transformando-se em pequenas
pedras brancas do tamanho de uma pipoca. Quando queimada num cachimbo, a pedra
emite pequenos estalos – daí o nome "crack". Ao ser fumada, a droga
atinge os pulmões e entra na corrente sanguínea instantaneamente, chegando ao
cérebro em poucos segundos – ao contrário da cocaína em pó, que leva cerca de
dez minutos para fazer o trajeto. O efeito também é muito mais forte. O crack
bloqueia a absorção natural da dopamina, o neurotransmissor que dispara no
cérebro a sensação de prazer. Com excesso da substância entre os neurônios,
surge uma sensação imensa de euforia e onipotência. Quando o efeito passa, vem
a depressão – e, com o uso freqüente, as reações paranóicas. Como a dopamina é
o principal regulador do sistema de prazer e recompensa, o crack vicia
rapidamente.
Para quem tem dinheiro no bolso, o
crack é ainda mais perigoso. São comuns os casos de viciados que pagam a droga
com bens roubados da família ou forçam os pais a pagar suas dívidas com os
traficantes alegando que correm risco de vida. Muitas vezes, quando as fontes
que financiam a droga secam, o viciado recorre a outras práticas ilícitas.
"Eu, que sempre estudei em colégios particulares, de repente me vi
assaltando com uma faca na mão para comprar pedras", diz o estudante de
marketing L., 21 anos, de Fortaleza, livre do vício há um ano e dois meses.
"O mais impressionante é que, ao assaltar, não pensava estar fazendo algo
errado. Lutar para conseguir pedras parecia tão natural e correto como procurar
comida para saciar a fome", ele completa.
Sob o domínio do crack, muitos viciados
se isolam e viram – mesmo que temporariamente – indigentes. Ao contrário do que
ocorre com a maconha ou a cocaína, o crack torna impossível manter relações com
o círculo de amigos, no trabalho ou em casa. A degradação se dá em poucas
semanas. Primeiro, o viciado emagrece rápido, já que a cocaína inibe o apetite
e provoca náuseas diante da comida. Depois, passa dias sem dormir e perde até
mesmo a vontade de tomar banho. Esquece-se de que existem horários e regras.
Como o crack age como anestésico, queimam-se a boca e o nariz ao fumar, sem que
se perceba. "É comum que as mulheres dependentes se prostituam por
qualquer valor só para comprar as pedras, contraindo doenças sexuais
rapidamente", diz a médica Solange Nappo, professora de psicobiologia da
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que estudou as práticas de oitenta
viciadas em crack de São Paulo. Um levantamento da Universidade Estadual de
Campinas, feito no ano passado, mostrou que 7% dos usuários de crack têm o
vírus HIV – índice dez vezes maior que o da população em geral. "É verdade
que o crack é a droga preferida de mendigos e prostitutas, mas isso acontece
também porque ele transforma estudantes e trabalhadores comuns em mendigos e
prostitutas", afirma Solange.
À medida que o consumo de crack
progride, chega a fase das reações paranóicas. O viciado acha que está sendo perseguido
e tem pensamentos obsessivos – vem daí o apelido de "nóias" que esses
dependentes carregam. Quando passou por isso, a estudante paulista de
psicologia M., 31 anos, livre da droga há três, não conseguia manter as janelas
de casa abertas. Diz ela: "Eu realmente achava que estavam me espionando
pela janela ou pelas frestas da porta. Também ouvia sirenes da polícia e
passava horas rastejando, procurando no chão e no meu carro algum resto de
pedra que pensava ter derrubado". Com sentimentos psicóticos, os viciados
se tornam mais desconfiados e se enfurecem com maior facilidade, protagonizando
cenas de violência gratuita. Passada a depressão que se segue à paranóia, chega
o melhor momento de largar o vício. "Quando me vi na favela, sem pedras e
depois de ter vendido até os brinquedos do meu filho para comprar crack, saí
correndo para a casa da minha mulher. Corri uns 10 quilômetros descalço, com
bolhas no pé, e disse a ela que precisava de ajuda", conta F., corretor de
imóveis de Belo Horizonte, que passou três anos consumindo a droga.
A dependência química é uma enfermidade
reconhecida pela Organização Mundial de Saúde. Ainda não há tratamentos ou
remédios que impeçam que o dependente tenha recaídas. Nas clínicas, o viciado
geralmente toma antidepressivos ou ansiolíticos e passa por sessões de
auto-ajuda para que consiga escapar da "fissura", a vontade de voltar
à droga. "Em média, apenas 30% dos dependentes de crack permanecem na
abstinência por mais de um ano", calcula o psiquiatra André Malbergier, do
Hospital das Clínicas de São Paulo. A internação, pelo menos, afasta o viciado
dos pontos de compra de crack e alivia temporariamente o tormento constante
pelo qual passam seus familiares. Nos centros de internação involuntária, como
o paulista Viva, de Piedade, muitas vezes os dependentes chegam amarrados –
último recurso usado pela família para conduzi-los ao tratamento. Como numa
prisão, agentes de segurança vigiam portões e muros de 4 metros de altura.
Os jovens que conseguem sair do vício
são os que percebem que estão muito doentes e têm de se tratar. "O viciado
já dá um passo à frente quando sabe que precisa de ajuda", diz a médica
Cláudia de Oliveira Soares, que lida com dependentes químicos há catorze anos.
A força de vontade e o apoio familiar são essenciais quando o dependente volta
para casa. Diz o dentista C., de São Paulo, livre da droga há três anos:
"Durante oito ou nove meses, não passei um minuto sozinho. Percebi que
precisava dos outros e ainda preciso. Um dia você decide se livrar do crack, mas
permanece dependente a vida toda. O pesadelo do crack não tem fim".Apagão ao volante
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