AMOR QUE FERE
violência doméstica
Ana*, uma bem-sucedida secretária executiva de São Paulo, continua casada. Tem 32 anos e aparenta menos. Magra, rosto delicado, ela ganha expressão quase infantil sempre que sorri, franzindo os belos olhos negros. É difícil imaginar que essa mulher bonita tenha uma história de dor e de coragem para contar. Nascida em uma família de classe média alta, ela foi vítima de violência doméstica ainda criança. Desde cedo, acostumou-se a presenciar as brigas dos pais – uma roda-viva de gritos, choro e objetos quebrados. Aos 18 anos, fugiu de casa para escapar das ameaças e surras que vinham da mãe. Manter-se sozinha não foi fácil. Trabalhava, estudava e pagava o aluguel de um quarto. Era uma rotina solitária.Três anos depois, encontrou Alberto*. Mais velho e viúvo, ele conquistou o amor de Ana aos poucos, devolvendo a ela o sonho de construir uma família. Já casados, veio o pesadelo. Ana descobriu que o homem maduro e protetor que mudara sua vida também sabia bater.
"Alberto era de uma conhecida família de políticos da cidade e já havíamos nos visto algumas vezes. Numa delas, fui entrevistá-lo para um trabalho da escola quando ele assumiu um cargo público. Eu cursava o ginásio. Anos depois, ele ficou viúvo. Era 14 anos mais velho, tinha 1,90 m, olhos verdes e um sorriso encantador. Quando começou a me dar bola, pensei: 'Devo estar sonhando... o que é que esse cara quer comigo?'. Muito mais experiente, ele sabia como me encantar. Trazia sempre uma flor, um chocolate, algo para agradar. Eu tinha dificuldade em me relacionar. Ainda trazia amargura das brigas com minha mãe. No dia em que saí de casa, ela me bateu, chegou a pisar no meu pescoço. Por toda essa violência, me tornei uma pessoa arredia e com baixa auto-estima. Achava que não merecia ser amada. Mas, diante do imenso carinho do Alberto, me apaixonei.
Depois de oito meses de namoro, nos casamos. Ele tinha três filhos: Fábio*, de 11 anos, Henrique*, de 6, e Ana Carolina*, 1 ano. Se para algumas mulheres isso poderia ser desencorajador, para mim era um atrativo. Adorei a idéia de ter uma família a minha espera. Com a morte da mulher, Alberto tinha montado uma infra-estrutura doméstica que funcionava bem. Assumi a administração de tudo, mas continuei trabalhando. Estava bem profissionalmente. Era secretária executiva em uma grande empresa, fazia viagens internacionais para acompanhar os diretores e cursava Letras.
Mas essa situação não agradava Alberto. Ele dizia que nenhuma das mulheres dos irmãos trabalhava... Meu sogro chegou a sugerir ao filho que me engravidasse, 'assim ela pára em casa'. Como meu marido era gaúcho, descendente de italianos, eu acreditava que esses pensamentos conservadores faziam parte da sua cultura, mas poderiam ser contornados. Alberto, então, passou a agir sutilmente para satisfazer seu sentimento de posse. Ia me levar e buscar todos os dias no trabalho e na faculdade. O que antes era uma gentileza passou a fazer parte de um programa de controle. Quando alguém me ligava em casa, ele sempre dava um jeito – brigava com as crianças, me chamava, gritava –, tudo para que eu desligasse logo. Táticas para que eu fosse abrindo mão da minha vida. Durante a semana, à noite, ele sempre queria ir ao cinema, teatro, jantar fora e eu tinha que acordar cedo no dia seguinte. Seis meses depois, tranquei a matrícula na faculdade. Pensei que assim ele ficaria satisfeito. Não adiantou. Veio o Plano Collor. E, se aproveitando do meu descontentamento com o salário congelado, Alberto começou uma campanha: 'Querida, temos uma boa situação. Aproveite a vida, durma mais e, com o tempo, se quiser voltar a trabalhar, montamos um negócio para você', dizia. Acabei aceitando. Foi quando o inferno baixou em nossas vidas.
Logo no início do casamento, fiquei surpresa com a agressividade do Alberto com os filhos. Era só eles aprontarem aquelas coisas de criança para que o pai os ameaçasse aos berros: 'Vou te quebrar no meio!'. Às vezes, Alberto pegava a primeira coisa que via pela frente e jogava nas crianças. Era vassoura, panela, tudo voando pelos ares. Aquilo não combinava com o homem que conheci antes de casar. Ele se justificava: 'Na minha família é assim mesmo'. Era um pesadelo que voltava. Ainda podia escutar os gritos de minha mãe.
O tempo passou e, sem perceber, fui ficando cada vez mais dependente do Alberto. Ligava para ele do cabeleireiro para perguntar sua opinião sobre o corte. Comprava roupas e fazia o mesmo. Tudo piorou quando os negócios dele faliram. Ele era um empresário de sucesso na construção civil, acabou perdendo tudo por empreendimentos mal dimensionados e investimentos arriscados na bolsa. Ficamos só com a casa e dois carros. Não tinha mais dinheiro para pagar empregada e estava difícil até fazer supermercado. Resolvi procurar emprego.
Quando comecei a trabalhar, ele explodiu. Nessa altura, eu tinha assumido as crianças como se fossem minhas. Ana Carolina estava com 3 anos e éramos muito ligadas. Uma noite, a menina teve febre e não parava de chorar. Alberto se trancou no quarto com ela e não deixou que eu entrasse. 'Ela está doente por sua causa. Você não quer trabalhar? Então deixe que eu cuido das crianças', gritava. Desesperada, batia na porta e ouvia Ana Carolina me chamando. Isso durou três dias, até que eu ameacei denunciá-lo para a polícia caso ele não chamasse um médico. Então, ele desapareceu com a menina: a vingança foi levar meu bebê para a casa da minha sogra. A partir daí, a situação só piorou. Olhava para ele e tinha medo do que via. Ele chegou a me chamar de vagabunda porque não ficava em casa. Como não deixei de trabalhar e resolvi também voltar a estudar, passou a me agredir usando as crianças. Para me machucar, batia no Fábio, na época com 14 anos. Um dia, resolvi interceder pelo menino. Foi pior. Alberto continuou a bater e dizia que o menino estava apanhando por minha causa. Fiquei louca e percebi que, lentamente, ele havia destruído o amor que sentia por ele. Decidi sair de casa.
Programa de controle.
Segundo a psiquiatra americana Lenore Walker, que estuda a cumplicidade da mulher com seu agressor, a violência doméstica segue ciclos. No primeiro, a agressividade do parceiro faz com que a mulher tente se anular para acalmar os ânimos.
Você não quer trabalhar?
O Banco Mundial estima que a violência contra a mulher é causa de uma em cada cinco faltas ao trabalho. Pesquisa da Universidade de Western Ontario, no Canadá, calcula que a violência custa em média àquele país US$ 4,2 bilhões por ano em dias de trabalho perdidos e custos hospitalares.
Comecei, então, a guardar dinheiro. Cheguei a alugar um apartamento, faltava apenas pintar para que eu me mudasse. Uma semana antes, Alberto sofreu um acidente e quase morreu. Não podia abandoná-lo naquele momento. Peguei o dinheiro que tinha economizado, comprei remédios e cuidei dele. Aos poucos, ele foi se recuperando, parecia ter renascido. Voltou a ser o homem amoroso que conheci. Senti que, aos poucos, aquele sentimento que eu julgava perdido reacendia. A fase boa durou um ano. Bastou eu voltar a estudar e trabalhar para nossos problemas retornarem. No acidente, Alberto perdeu um olho e ficou ainda mais inseguro. Eu não podia sair de casa sem dizer para onde ia, com quem, a que horas voltava. Quando chegava cedo da faculdade, ele queria saber por que tinha chegado mais tarde na noite anterior.
Os meses foram passando e a principal ocupação do Alberto era tomar conta de mim. Implicava com minhas roupas, com a maquiagem. Dizia que isso era sinal de que eu tinha um amante. Só que eu não ia mais baixar a cabeça. Numa discussão, quando ele gritou que eu não parava mais em casa, respondi que não tinha motivo para isso. Sem dó e com força, ele virou uma bofetada no meu rosto. Na hora, foi como se eu tivesse morrido. Não sentia mais o corpo, as lágrimas começaram a rolar e eu fiquei chorando horas seguidas. Alberto também ficou mal. Tentou esboçar um pedido de desculpas, mas não conseguiu. Naquele dia, não fui ao trabalho. Meu rosto ficou vermelho, ardia, e um sonho de felicidade tinha ruído.
Resolvi sair de casa. No mesmo dia, fui morar com uma amiga. Quando voltei para pegar minhas coisas, percebi que Alberto tinha trocado a fechadura da porta. Prestei queixa na Delegacia da Mulher. Foi expedido um mandado judicial para que eu pudesse tirar minhas coisas de casa. No dia marcado, ele deixou o filho do meio – Henrique – me esperando. Fiquei emocionada ao ver o menino. Ele pediu para ir comigo e me deixou preocupada com a situação das crianças. Eu e Alberto ficamos oito meses separados. Naquele período, o mundo desabou sobre minha cabeça. O apartamento onde morava foi assaltado, perdi o emprego e o lugar em que fui morar com minha amiga acabou desapropriado. De longe, Alberto acompanhava tudo.
Um dia, ele me ligou. Disse que eu tinha sido uma grande companheira em um momento difícil e que gostaria de fazer algo por mim. Reconheceu que não havíamos dividido os bens e que eu tinha direitos. Resultado: como não tinha para onde ir, aceitei a proposta de morar no quarto de hóspedes. No começo foi estranho, mas aos poucos voltamos a nos aproximar.
Mas o ciúme dele continuava doentio. Não demorou muito para voltarmos a brigar e ele me bateu novamente. Dessa vez, caí e ele continuou batendo enquanto eu tentava me proteger. Só parou quando Henrique pediu. Voltei à delegacia. Mas me senti humilhada. Durante a audiência de conciliação, a juíza me perguntou quanto eu queria pelo que ele fez. Ora, eu não queria dinheiro. Era como se tivesse vendido o meu rosto pela bofetada. Comecei a chorar no tribunal e respondi que nenhum dinheiro pagaria aquela dor. No fundo, queria que aquele homem – que de alguma maneira estranha me queria bem e eu o queria também – se curasse, se tratasse.
Alberto ficou muito constrangido. Pediu desculpas e, quando cheguei em casa, minha cama estava forrada de rosas. No quarto, tinha duas malas prontas. Na sala, os pais dele me esperavam. Havia no ar uma pressão para que continuássemos juntos. E uma das razões era o fato de a família dele ter pretensões políticas. Meus sogros fizeram aquele discurso de que deveríamos tentar superar a crise e as palavras mexeram comigo. Eu me sentia sozinha e, como eles diziam, sem Alberto ia perder a família que tinha.
Fomos viajar -foi um tempo doloroso. Depois de 15 dias na praia, voltei e continuava no fundo do poço. Não tinha mais trabalho, o homem que eu amei se revelou um agressor, os filhos dele – que, de alguma forma, também eram meus – estavam longe e nossa ligação, abalada. Percebi que não conseguia sair daquela relação que estava me matando aos poucos. Não via saída. Então, tentei me suicidar. Foram 24 comprimidos de um tranqüilizante forte com meio litro de uísque. Acordei no hospital. Depois disso, fiquei seis meses vegetando. Só saía para ir à terapia.
Tentei me suicidar
Vítimas de violência doméstica são mais propensas ao suicídio. Segundo relatório do instituto italiano Innocenti, ligado ao Unicef, 40% das americanas espancadas pelos companheiros tentam se matar.
Dois anos se passaram e, aos poucos, me coloquei de pé.Voltei a estudar, dessa vez pedagogia. Com Alberto, as coisas também pareciam estar entrando nos eixos. Saíamos para dançar e ele tinha se tornado um amigo. Mas bastava ele entrar no cheque especial ou passar por alguma situação difícil para que descontasse em mim sua agressividade. Um dia, no meio de uma discussão, veio um tapa violento, um murro, na verdade. Ele quase quebrou meu nariz e a dor era tanta que pensei que meu maxilar estava em frangalhos. Fiquei com o rosto inchado e roxo durante um mês e tive princípio de hemorragia em um dos olhos. Na hora, ele percebeu que a agressão foi grave. Começou a chorar, a dizer que não queria fazer aquilo, que estava ficando louco. Quando me olhei no espelho no dia seguinte e vi o estrago que tinha deixado ele fazer, fiquei com vergonha de mim mesma. Eu, que sempre passei a imagem de mulher independente, tive que encarar de frente minha fragilidade diante da situação.
Durante quatro dias, não saí do quarto. Não queria que os meninos e a empregada vissem meu rosto. Quando encontrei forças para me levantar, fui direto para a delegacia. Dessa vez, fui encaminhada para o Instituto Médico Legal e submetida a exame de corpo de delito. O médico que me atendeu olhou espantado, perguntou o que havia acontecido e, entre os dentes, disse: 'Um animal'.
Continuei morando na mesma casa que Alberto, mas, poucos dias depois do exame, entrei com representação contra ele. O processo corria na justiça comum, porque ele já não era primário, e eu poderia colocá-lo na cadeia. Quando me apresentei no fórum, senti mais uma vez o peso de ser casada com alguém de uma família importante. 'A senhora tem certeza de que quer levar isso adiante?', perguntou o funcionário em tom quase ameaçador. É claro que prossegui. No dia da audiência, apesar de toda a raiva, resolvi tomar outro caminho. Tinha tudo para colocá-lo na cadeia, fazer escândalo nos jornais. Mas fiz um acordo. Para que o processo ficasse suspenso por dois anos, ele teria que fazer terapia. Me lembro até hoje do que disse a ele: 'Ou eu te coloco na cadeia ou você vai se tratar. Se é de propósito que você bate em quem diz amar, merece ser preso; se não é, está doente'.
Para segurar essa barra-pesada, procurei ajuda na Casa Eliane de Grammont. Encontrei também um psiquiatra para atender Alberto. No começo, ele foi porque se sentiu ameaçado. Mas bastaram algumas sessões para que ele percebesse que encarar o problema de frente era a chance de uma nova vida. Numa das sessões, descobri que Alberto tinha sido vítima de violência na infância. Chorando, ele contou que as surras eram uma rotina. Revelou também que o pai era um homem bruto -socava a mulher e, pouco depois, a família se reunia em torno da mesa como se nada tivesse acontecido. Passei a compreender as contradições dele.
No dia da audiênciaCerca de 70% das agressões domésticas são julgadas nos Tribunais de Pequenas Causas. A punição, em geral, é uma multa ou uma cesta básica a ser doada a instituição filantrópica. Com R$ 50, o agressor limpa sua barra. A mulher sai humilhada.
Bem-Vinda - Centro de Apoio à Mulher (MG) (31) 277-7047
Não significa que aceite suas atitudes. Estamos tentando estabelecer uma relação em outras bases. E essa última chance que estou dando só é possível porque percebo o esforço dele em descobrir outras saídas dentro de si mesmo para se tornar um homem melhor. Sei que é muito doloroso para ele remexer nisso tudo, tem dias que chega em casa arrasado. No próximo mês, vence o prazo de dois anos e estaremos diante do juiz novamente. Sei que a ameaça do processo já perdeu parte do efeito. Fica claro que esse sacrifício ele tem feito por mim. Mas, depois de tantas agressões, nem sei dizer se ainda o amo. Percebo que ele tem se tornado um homem diferente, que chora com mais facilidade, fala de seus sentimentos e já não se sente pressionado a ser super-homem. Estamos em período de experimentação. Quando ele sente que corre o risco de perder o controle, pede para ficar sozinho. Sei que para muita gente posso parecer tola – depois de apanhar várias vezes estou dando a ele mais uma chance. É estranho. No fundo, sei que ele é boa pessoa e que, de alguma forma, é também vítima dessa situação. E o melhor de tudo é que tenho certeza -por tudo o que construí em minha própria vida- de que já não preciso dele para ser alguém. Já não me sinto presa a essa armadilha que eu mesma ajudei a criar. Juntos ou separados, fica claro que seremos pessoas melhores."
Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos envolvidos
Agressor no divã
Nada de multas, trabalho comunitário ou uma temporada na cadeia. A pena para muitos agressores tem sido o divã. Experiências desse tipo, em que maridos e namorados violentos se submetem a tratamento psicológico – às vezes, ao lado da vítima –, são sucesso nos Estados Unidos, França e Canadá. Em San Diego, na Califórnia, o programa de intervenção terapêutica dura um ano e tem uma taxa de reincidência de apenas 5%. "Mas, no Brasil, o agressor é visto como um criminoso. Ninguém percebe que ele também é uma vítima", contrapõe a psicanalista Malvina Muszkat, presidente do Pró-Mulher, uma organização não-governamental paulistana que existe há 22 anos para apoiar mulheres vítimas de violência e desde 93 passou a envolver o próprio agressor na solução dos casos. "Os homens chegam aqui carentes de serem ouvidos. Na sociedade, são perseguidos e não têm espaço para expor suas ansiedades. Muitas vezes, nem percebem que a violência passou a ser usada por eles como forma de comunicação. Em vez de falar, batem porque foi assim que aprenderam a resolver conflitos. Aqui encontram solidariedade para mudar", diz Malvina.
fonte: marieclaire.globo.com
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