Um hospital que entende as mulheres
Como um grupo de médicos de Buenos Aires lançou um programa pioneiro para atender vítimas de crimes sexuais
Milagros Belgrano Rawson Universidade de Buenos Aires, Argentina Andrea M., argentina de 25 anos de idade e estudante de enfermagem, foi estuprada numa tarde de 2004 quando voltava para casa vindo da estação ferroviária. Um estranho aproximou-se por trás dela e mostrou uma faca. Ameaçou matá-la se ela fizesse algum barulho e ordenou que continuasse andando até chegarem a uma garagem. Lá, ele a estuprou e desapareceu. Andrea caminhou como pôde até sua casa. Sua mãe a levou ao Hospital Eva Perón, em Merlo, um bairro na região oeste da área metropolitana de Buenos Aires. Dali, ela foi encaminhada ao Hospital Alvarez, localizado no bairro de Flores, onde foi recebida pelo Programa de Atendimento a Vítimas de Violência Sexual. Andrea teve sorte de chegar ao Hospital Alvarez. Os funcionários do programa – um dos três únicos desse tipo em funcionamento em hospitais de Buenos Aires – a atenderam com compreensão e respeito. Deram-lhe medicações destinadas a evitar a gravidez e doenças sexualmente transmissíveis e a encaminharam a uma psicóloga especializada em violência sexual.
O programa nasceu quando Diana Galimberti, subdiretora do hospital, ficou sabendo que 82 hospitais no Brasil dispõem de sistemas especiais montados para atender mulheres vitimadas por estupro. Essa informação chamou sua atenção, porque, de acordo com a Direção de Política Criminal da Argentina, de 1.000 a 1.100 estupros são denunciados por ano na cidade de Buenos Aires e na região da província de Buenos Aires.. “Os hospitais de Buenos Aires estão recebendo cada vez mais mulheres violentadas”, diz Galimberti, ginecologista especializada em direitos reprodutivos. “Mas, se essas mulheres não receberem os cuidados adequados, elas podem ficar grávidas ou contrair aids.”
Usando o programa brasileiro como modelo, Galimberti reuniu um grupo de colegas especializados em doenças infecciosas para criar um protocolo de assistência a vítimas de estupro durante 24 horas do dia, sete dias por semana. Em novembro de 2002, o protocolo foi lançado como um programa-piloto no Hospital Alvarez, localizado em Flores, um bairro de classe média de Buenos Aires.
“Eu queria que fosse como o programa do Brasil, embora não contássemos com muitos recursos financeiros”, diz Galimberti. Alguns meses depois, a Secretaria da Saúde ordenou que todos os hospitais públicos tentassem implementar protocolos semelhantes. Todas as mulheres que chegam ao Programa de Atendimento a Vítimas de Violência Sexual do Hospital Alvarez são entrevistadas por uma psicóloga de plantão e examinadas por uma ginecologista. Idealmente, dizem os médicos, uma mulher que tenha sido estuprada deve ser atendida pelo serviço dentro das 24 horas transcorridas depois da agressão. Se ela agir depressa, os medicamentos podem evitar que seja contaminada por HIV/aids e outras doenças sexualmente transmissíveis, como gonorréia, clamídia e hepatite B. Além disso, se a vítima chegar ao hospital em até 72 horas depois do estupro, serão oferecidas a ela pílulas contraceptivas de emergência [popularmente conhecidas como “a pílula do dia seguinte”]. “Até agora, nenhuma das mulheres que receberam esse tratamento ficou grávida”, diz Susana Larcamón, psicóloga do programa. E nenhuma das que receberam a medicação contraiu o HIV/aids. “Mas algumas mulheres vêm um mês depois do estupro, quando já é tarde demais para receber essa medicação”, explica ela. “Ou a gravidez já está muito avançada quando elas procuram auxílio.”
Depois de completado o tratamento preventivo, a mulher recebe aconselhamento psicológico. “Achamos que é possível recuperar-se de um estupro”, diz Larcamón. “Claro que depende da situação e dos recursos emocionais da mulher. O estupro é uma violência que permanecerá com ela por toda a vida. Mas é algo com que uma mulher pode lidar.” Na maioria dos casos, o tratamento psicológico para vítimas de estupro dura no máximo seis meses. “A meta é que as mulheres não permaneçam traumatizadas pelo que lhes aconteceu e possam retomar sua vida”, comenta Larcamón. Ainda assim, acrescenta, algumas mulheres se recusam a conversar sobre o que aconteceu com elas e a receber ajuda psicológica. “Elas só vêm tomar a medicação, e nós respeitamos essa decisão”, diz ela.Cultura do silêncio. “Os médicos cuidaram muito bem de mim”, diz Andrea M. sobre sua experiência no Hospital Alvarez. “Eu também conversei com a psicóloga algumas vezes, mas ficar lembrando tudo o que aconteceu me deixava angustiada, então parei de ir às consultas.” Cinco meses depois de ter sido atacada, Andrea ainda não se sente segura para sair de casa sem a companhia de alguém da família. “Muitas vezes penso que poderia ter batido naquele homem, tê-lo mordido, ter feito alguma coisa, não sei. Mas, em vez disso, fiquei paralisada de medo. Nem sequer o arranhei”, diz ela. A psicóloga no Hospital Alvarez explicou-lhe que ela, na verdade, fez muito: conseguiu salvar sua vida. “Ela me disse que estou viva por não ter feito nada para aquele sujeito. Mas isso não me faz sentir-me melhor. Continuo achando que deveria ter tido mais cuidado naquela tarde”, diz Andrea.
Como tantas outras vítimas, Andrea a princípio não quis registrar queixa na polícia. “Minha mãe disse que iam me fazer passar por maus momentos na delegacia, então decidi esquecer o acontecido”, contou. De acordo com as estatísticas do Centro de Encontros Cultura e Mulher de Buenos Aires, apenas 10% dos estupros na Argentina são denunciados à polícia. E dos julgamentos por crime sexual, apenas 10% acabam em condenação do acusado. “As famílias e mesmo os advogados com freqüência aconselham a vítima a não se envolver num processo judicial”, diz Larcamón.
Marcela Rodríguez, advogada e deputada, ex-diretora do Centro Municipal da Mulher de Vicente López, diz que nem sempre é uma boa idéia registrar queixa na polícia. “Se tudo o que a vítima quer é que o agressor seja punido, e se sabemos que não há nenhuma possibilidade de sucesso e que tudo terminará em mais frustração, não se deve necessariamente incentivá-la a dar queixa na delegacia”, diz ela. Mas se a mulher deseja que pelo menos fique registrado que o agressor foi acusado de um crime, “então eu acho que ela tem mais razões para fazer a denúncia. Porque ela estará tentando tomar atitudes adicionais que podem ajudá-la no processo de recuperação”, observa. De acordo com Rodríguez, uma das razões pelas quais as mulheres não se sentem motivadas a denunciar estupros à polícia é a taxa extremamente baixa de condenação dos agressores. De fato, muitos dos estupros que são denunciados nem sequer chegam ao tribunal. Segundo estatísticas do Ministério da Justiça da Argentina, mais de dois terços dos estupros registrados em delegacias de Buenos Aires em 2003 não foram solucionados. Apesar da resolução da Secretaria da Saúde determinando que todos os hospitais municipais de Buenos Aires oferecessem programas para vítimas de estupro, apenas dois deles cumpriram a determinação, além do Hospital Alvarez. Como os hospitais dos subúrbios de Buenos Aires não dispõem de programas para vítimas de estupro, o Hospital Alvarez recebe muitas pacientes também da província de Buenos Aires.
A maioria delas vem de famílias de baixa renda, mas o programa também tem atendido mulheres de classe média e estudantes universitárias. E, embora isso não fizesse parte do plano original, também tem sido oferecido atendimento a homens, crianças e adolescentes. Desde 2002, o programa do Hospital Alvarez atendeu mais de 130 vítimas de estupro. A maioria das pacientes havia sido estuprada por homens desconhecidos, embora também houvesse casos de abuso por um membro da família: “Embora as denúncias dessa natureza sejam em número menor, isso não significa que existam menos casos”, diz Larcamón. Quando o programa começou, prossegue Lamarcón, vieram mulheres que haviam sido estupradas há 15 anos ou quando eram crianças. “Atendemos a todas, porque parecia crueldade mandar alguém embora”, lembra-se. Agora, porém, o programa centra-se em casos de “emergência”, ou seja, casos em que o estupro ocorreu nas 72 horas anteriores ao comparecimento da vítima aos consultórios do programa. Mulheres que foram ou são vítimas de abuso de longa duração são encaminhadas a centros especializados. “Tentamos tornar a experiência no hospital o mais amigável possível para essas mulheres que já passaram por algo tão traumático em sua vida”, diz Galimberti. “Além disso”, prossegue, “quando se fala de violência contra as mulheres, é preciso falar também de ‘violência institucional’. Infelizmente, nos hospitais muitos médicos dão a pacientes dependentes da saúde pública um tratamento bem diferente do que oferecem àqueles que têm seguro de saúde privado, como se estivessem fazendo aos primeiros alguma espécie de favor.” E os hospitais públicos não participam dos problemas comunitários. Mas, nesse particular, o Hospital Alvarez é uma exceção. Ele é o único hospital público na Argentina que investiga a ocorrência de violência na vida de seus pacientes, incluindo as informações em seu histórico clínico. Alguns anos atrás, os médicos da maternidade começaram a perceber sinais de violência familiar entre algumas pacientes. Em vista disso, o hospital decidiu treinar representantes sanitários municipais a aplicar um questionário destinado a detectar casos de violência física, verbal ou sexual entre as mulheres que aguardavam atendimento. O resultado foi a descoberta de que 33% das mais de 3.000 mulheres entrevistadas estavam sofrendo algum tipo de violência doméstica na ocasião da entrevista.
“Estou convencida de que a violência contra as mulheres precisa ser uma prioridade para os profissionais de saúde”, diz Galimberti. Segundo ela, é muito mais fácil conseguir financiamento para pesquisa sobre o câncer ou antibióticos do que a respeito de problemas de gênero. “Mas não estou sozinha: há muita gente que acredita em nosso trabalho e apóia o que fazemos.”
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