NOSSAS EXPERIÊNCIAS

14 de jan. de 2012

Para realizar esta reportagem, VEJA entrevistou oito homens que tinham infectado a mulher. A idéia era que relatassem sua história e se deixassem fotografar. Ninguém concordou. As justificativas iam do medo dos comentários entre colegas de trabalho até a reação dos filhos. Alguns reconheceram que temem ser tachados de homossexuais. Todos falam com remorso sobre a transmissão do vírus para a mulher. "Eu sei que acabei com a vida dela e me arrependo muito", relata o engenheiro paulista Jorge. "Minha filha está crescendo com dois pais sob risco de morte." Ele soube que estava com o vírus em 1992, quando foi doar sangue para um colega de trabalho hospitalizado. A doação foi recusada, e ele teve de fazer um novo teste. "Larguei meu emprego e mudei com minha família para o interior, mas o casamento não durou mais um ano", lembra. "Felizmente minha ex-mulher ainda não desenvolveu a doença."

Para quem se chocou com os relatos, é sempre útil lembrar que a única forma segura de não engrossar as estatísticas da Aids é usar o bom senso e a camisinha. Não é tão simples, mesmo porque as mulheres que são contaminadas em geral não tinham motivo para suspeitar do risco que corriam junto de seus parceiros. Então, por que tomar precauções? As pessoas podem, no entanto, agir com mais responsabilidade, sobretudo os homens. E talvez com um pouco mais de malícia, sobretudo as mulheres.

 * Os bissexuais, por exemplo, deveriam ter a dignidade de renunciar ao casamento para não colocar em risco suas esposas. O homem nessa situação simplesmente não tem o direito de fingir que leva uma vida normal.

 * Para o homem ou a mulher casados que mantêm aventuras heterossexuais, é imperativo o uso da camisinha nesses encontros fora de casa. É o mínimo que se pode esperar. Comportar-se de maneira diferente é agir como um assassino em potencial.

* A mulher casada que tenha a mais leve desconfiança de que seu marido mantém relações extraconjugais precisa exigir a camisinha. Se desconfiar que o parceiro pode ter relações homossexuais, então, a exigência é muito mais urgente.

Isso é o que dizem os médicos e especialistas no comportamento de pessoas que se contaminaram. A mesma sugestão, no entanto, acaba sendo colhida da principal das vítimas: a mulher. Ouça-se pela última vez a pedagoga Jerusa Maria Mendes, de Pernambuco: "Depois de odiar meu marido num primeiro momento, depois de me odiar, passei a ver uma coisa que não via antes. Reconheço que a culpa pela presença do vírus no meu corpo é dos dois: dele por ter me contaminado e minha por não ter exigido a camisinha. Se eu pudesse voltar atrás, teria tomado essa decisão tão simples e hoje seria saudável".

Não posso ter filhos

"Eu desconfiei que poderia estar contaminada pelo vírus da Aids antes mesmo de fazer um exame. É que meu marido, de uma hora para outra, ficou muito doente. Desenvolveu uma tuberculose que não sarava mais. Fiquei sabendo que era Aids, e o teste a que me submeti foi apenas uma confirmação. Nunca senti raiva. Minha única preocupação foi cuidar dele até o fim. Acompanhava suas idas semanais ao médico, tomava conta dos horários de medicamento e cozinhava legumes e verduras duas vezes ao dia. Como ele dormia só quatro ou cinco horas por noite, eu também ficava acordada. Depois desse período terrível, ele se recuperou e viveu mais quatro anos como uma pessoa normal. Foi a melhor fase do nosso relacionamento. Quando ele morreu, perdi o rumo. Entrei em depressão e não saí de casa por uns dois meses. Agora estou num grupo de auto-ajuda e encontrei um namorado soropositivo. Ainda não desenvolvi a doença, mas a Aids me tirou um grande sonho: não vou poder ter filhos."
Greicilene Rodrigues
Fotos: Egberto Nogueira

A gente ia se casar

"Começamos a namorar quando eu tinha 15 anos de idade. Depois de seis anos de namoro e um de noivado, já tínhamos comprado apartamento e o meu enxoval estava completo. Faltava apenas marcar a data do casamento. Foi quando ele começou a ficar muito magro e doente. Dizia que era um problema intestinal. Só descobri que era Aids porque peguei uma caixinha do remédio que ele estava tomando, Estavudina, da família do AZT, fui até a farmácia e o senhor que me atendeu explicou para que servia. À noite perguntei: 'Nós estamos com Aids?'. Foi aí que descobri que o homem que eu amava estava morrendo sozinho sem me contar. Fiz o meu teste e, é claro, deu positivo. Fiquei desesperada, mas na hora ainda estava muito magoada por ele não ter confiado em mim. A doença nele foi fulminante. Três semanas depois que fiquei sabendo, ele morreu e eu achei que ia ser a próxima. Comecei a me destruir. Saía toda noite, bebia muito e não tomava os remédios. Depois de um ano encontrei outra pessoa que me ajudou muito e estou muito bem. Iniciei o tratamento com o coquetel, engordei e voltei a estudar."
Angélica Silveira

A fidelidade me traiu

"Não sou promíscua. Nunca fui. Só mantinha relações sexuais com meu namorado. Mas talvez se eu fosse, hoje não teria contraído o vírus da Aids. Não me preveni, não pedia a ele que usasse camisinha, como se o amor me proporcionasse imunidade. Mas a fidelidade me traiu. Histórias como a minha há muitas. Eu me apaixonei pelo meu namorado, que conheci por intermédio de um amigo comum. Um ano depois, ao fazer um exame de rotina, descobri que estava com o vírus. Quando peguei o resultado, simplesmente desabei. Quantas de nós deixam de se proteger em nome do amor, ou do 'o que ele irá pensar de mim?'. A pessoa amada é sempre idealizada e perfeita. Esquecemos que há lá atrás um passado de amores vividos. Por que não dialogar sobre o uso do preservativo pelo menos até o resultado do teste? Um homem aparentemente saudável, um colega de trabalho ou de faculdade pode estar infectado. Todo meu projeto de vida foi alterado. Coisas que eu pensava que teria anos para realizar passam a ter urgência."
Simone Borges
Foto: Renan Cepeda

Ele sabia havia seis meses

"Ele sabia que estava com Aids havia pelo menos seis meses e continuou levando o nosso casamento como se nada tivesse acontecido. Seguíamos mantendo relações sexuais sem preservativo. Ele mentiu logo para mim, que confiava cegamente no seu amor. Só soube que ele estava com Aids quando minha sogra avisou. Fiquei com tanta raiva que perdi o controle e bati nele. Fiquei com ódio. Estávamos casados havia cinco anos e depois da notícia nossa relação acabou. Não me separei porque tive medo de que as pessoas não me aceitassem. Não tenho como esquecer que estou com o HIV porque a discriminação está em toda parte. Uma vez, ao contar a um dentista que era portadora do vírus, ele disse que não podia me atender. Parei de fazer a unha com minha manicure depois que ela perdeu várias clientes por minha causa. Minha irmã também já perdeu um namorado depois que contou a ele que eu tinha Aids. Mesmo assim, não me arrependo de ter assumido a doença. Não conseguiria enganar as pessoas como meu marido me enganou."
Jacqueline Normandia
Foto: Eugenio Savio

Tentei o suicídio

"Para mim, a Aids me fazia lembrar do Cazuza na fase terminal da doença: um pouco de pele por cima dos ossos. Quando a notícia sobre minha contaminação se espalhou, tinha vizinho que corria para dentro de casa quando eu passava. Todos me evitavam. Eu mesma não sabia como me comportar. Poderia me aproximar dos meus filhos? Pegá-los no colo? Beijá-los? Eu queria morrer. Tentei o suicídio três vezes tomando remédios e me cortando com uma faca. Fiquei com muita raiva do meu marido, mas eu ainda o amava e não me separei dele. O desejo superou o trauma e a gente continuou mantendo relações sexuais. Um dia ele não tinha preservativos, nem eu. Como éramos soropositivos, não nos preocupamos. Acabei ficando grávida. A família dele queria que eu abortasse, mas não admiti. A Jessica nasceu infectada, mas depois de dois anos os exames mostraram que ela não vai desenvolver a doença. Nunca recebi uma notícia tão boa."
Elizabete do Rocio Chagas
Foto: Joel Rocha

Tive vontade de matá-lo

"Eu soube que estava com a doença por acaso. Apareceram uns nódulos no meu pescoço e fui consultar-me. Acabei fazendo alguns exames, entre eles o do HIV. Deu positivo. Estava casada há dezessete anos e não usava camisinha. Para mim, o preservativo era um bom método anticoncepcional. Mas eu tinha feito laqueadura depois do terceiro filho e não precisava disso. Jamais passou pela minha cabeça, como de resto pela cabeça da maioria das mulheres, que manter relações sexuais com o marido pudesse ser tão perigoso. Só vivia para a família, enquanto o meu marido me traía. Minha revolta era tão grande que pensei seriamente em matá-lo, mas não tive coragem. Felizmente já estávamos separados há dois meses, quando soube. Um dos momentos mais duros após a contaminação foi dar a notícia para meus filhos. Minha filha mais velha tinha 15 anos. Ela me viu chorando e perguntou o que havia acontecido. Eu não queria falar, mas não resisti. Para evitar que meus filhos passem por uma experiência semelhante, sempre falo sobre sexo seguro e em casa sou eu que forneço a camisinha para eles."
Romilda de Lima
Foto: Jader da Rocha

A Aids de mãe para filho

Crianças contaminadas
ao nascer: "a maior
parte dos casos
podia ser evitada"
Foto: Egberto Nogueira
Na esteira do avanço da epidemia de Aids entre mulheres está também o crescimento de um tipo ainda mais cruel de contaminação. É a transmissão perinatal do vírus, aquela que acontece da mãe soropositiva para o filho. O primeiro caso foi registrado no Brasil em 1985. Desde então, 40% das 3.596 crianças que nasceram carregando o vírus da Aids morreram. As sobreviventes, algumas passando hoje pela pré-adolescência, enfrentam uma rotina de medicamentos e preconceito. Muitas delas nem freqüentam escola porque não suportam o peso da discriminação. "O revoltante é que a maior parte dos casos de crianças com Aids poderia ser evitada", afirma a infectologista Marinella Della Negra, responsável pela ala de atendimento de crianças soropositivas do hospital paulista Emílio Ribas.
O fato de uma mãe ter o vírus da Aids não significa que a criança também seja infectada. A contaminação ocorre em um de cada quatro nascimentos. A transmissão do vírus, na grande maioria dos casos, não acontece durante a gestação, mas no parto. Na hora de nascer, a criança é banhada de sangue contaminado e o vírus penetra no organismo do bebê por meio de lesões microscópicas que são comuns na hora do nascimento. Se a gestante se tratasse com o remédio AZT, a quantidade de vírus que atinge a criança diminuiria drasticamente. Se a criança também tomar doses diárias de AZT nas primeiras seis semanas de vida, o vírus não se alastra e pode regredir. Com AZT, o risco de o bebê se tornar um soropositivo cai de 25% para 8%. O desafio de diminuir o número de registros da Aids perinatal depende também de informação médica. "Quando consulta uma gestante, os médicos pedem uma série de exames, mas não o de HIV. É uma negligência criminosa", acusa o infectologista paulista Caio Rosenthal. A prova desse pouco-caso é que no ano passado sobraram duas de cada três caixas de remédio anti-Aids na rede oficial de saúde. No período, mais de 600 crianças nasceram infectadas.

Com reportagem de Dina Duarte, do Recife, Luciano Patzsch, de Curitiba, Fabiana Godoy, de São Paulo, Consuelo Dieguez e Ronaldo França, do Rio de Janeiro, Daniella Camargos, de Belo Horizonte, e Cristine Prestes, de Porto Alegre

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