Dormindo com o inimigo
Sete em cada dez mulheres aidéticas são infectadas por seus maridos
Thomas Traumann e Karla Monteiro
Fotos: Leo Caldas-Lumiar/Egberto Nogueira/Edison Vara/Eugenio Savio/Jader da Rocha/Renan Cepeda/Joel Rocha/Rodolfo Machado | ||
Jerusa Maria Mendes, Recife 38 anos, pedagoga, cinco filhos. Ano do diagnóstico: 1995 | Angélica Silveira, São Paulo 24 anos, estudante de arquitetura. Ano do diagnóstico: 1994 | Greicilene Rodrigues, São José dos Campos 24 anos, dona de casa. Ano do diagnóstico: 1993 |
Maria Beatriz Dreyer Pacheco, Porto Alegre 49 anos, advogada, quatro filhos. Ano do diagnóstico: 1997 | Jacqueline Normandia, Belo Horizonte 32 anos, operadora de telemarketing. Ano do diagnóstico: 1991 | Romilda de Lima, Curitiba 36 anos, secretária, três filhos. Ano do diagnóstico: 1994 |
Simone Borges, Rio de Janeiro 29 anos, técnica de radiologia. Ano do diagnóstico: 1996 | Elizabete do Rocio Chagas, Curitiba 36 anos, vendedora, três filhos. Ano do diagnóstico: 1994 | Maria Helena Araújo, Florianópolis 46 anos, escrivã aposentada. Ano do diagnóstico: 1991 |
"Eu desconfiava que meu marido tinha suas aventuras extraconjugais. Desde 1993, ele apresentava sintomas estranhos. Foi internado várias vezes com crises de herpes-zoster e tuberculose. Resolvi fazer um exame. Nunca mais vou esquecer aquela sexta-feira 13, dia em que saiu o resultado. Era janeiro de 1995. Aos 35 anos de idade, confirmei uma suspeita que me martirizava: fui contaminada pelo HIV por meu marido. Fiquei em estado de choque. Só conseguia chorar e passei a pensar que iria morrer no dia seguinte. Eu me senti impotente, injustiçada, arrasada. Não era promíscua, não recebi transfusão de sangue nem usava drogas de nenhum tipo, quanto mais injetáveis. Só poderia ter pegado Aids de uma maneira: fazendo sexo com o homem com quem vivo há dez anos. Estou pagando pelo prazer que meu companheiro foi buscar fora de casa."
A primeira sensação das pessoas sadias é achar que alguma coisa errada houve para ter ocorrido o contágio.
— Isso não poderia ter acontecido comigo, é a conclusão errada que muita gente tira por causa da ignorância. A Aids foi no ano passado a doença que mais matou no mundo. Fez 2,3 milhões de vítimas. No Brasil, é a segunda doença que mais vítimas fatais faz entre as mulheres de 20 a 50 anos — período mais ativo de sua vida sexual. As doenças que mais matam são, pela ordem, câncer, Aids, doenças circulatórias, derrames, doenças cerebrovasculares e doenças respiratórias.
Nessa faixa de idade, a Aids matou no Brasil 2600 mulheres apenas em 1996. Há uma segunda razão para se preocupar com o problema. A relação heterossexual estável e monogâmica tornou-se, para as mulheres, a principal porta de entrada para o vírus da Aids. Segundo pesquisa feita pelo Núcleo de Estudos para a Prevenção da Aids da Universidade de São Paulo, 71% das mulheres soropositivas contraíram o vírus do marido ou de um namorado ou noivo com quem se relacionam há mais de um ano. Ficam bem atrás as contaminações em mulheres que trocam de parceiro com mais freqüência e as usuárias de drogas injetáveis. O estudo da USP foi feito com 148 entrevistas de portadoras do HIV e, de acordo com todos os especialistas consultados por VEJA, retrata uma tendência nacional da epidemia. Entre os homens, a conta é outra. De acordo com dados do Ministério da Saúde, 43% dos soropositivos dizem ter contraído o vírus em relações não convencionais (homossexuais ou bissexuais). Os que se dizem contaminados em relações heterossexuais são 25% do total. Com uma clareza que machuca, o confronto dos números reforça o que está escrito no título desta reportagem. Milhares de mulheres estão literalmente dormindo com o inimigo.
Doze mulheres por dia — Dois detalhes tornam o caso impressionante. O primeiro: Jerusa tem cinco filhos, o mais novo com 13 anos, o mais velho com 22, fruto do seu primeiro casamento. O mais velho tentou o suicídio depois de receber a notícia de que a mãe estava doente. O segundo detalhe, contado por ela própria: "Em várias oportunidades eu pedi ao Ernandes que usasse preservativo nas nossas relações sexuais, mas ele se recusou. Dizia que o pedido era coisa de feminista. Acabei cedendo, não pedi mais, e deu no que deu".
Quando um homem e uma mulher decidem viver juntos, eles estão dividindo mais do que uma paixão ou o sonho de formar uma família. É um gesto de confiança, um acordo de que os dois vão responsabilizar-se um pelo futuro do outro — e os dois pelo futuro dos filhos. Nem sempre funciona dessa forma, como mostram os números. A Aids, que já atingiu mais de 135.000 pessoas no Brasil, há muito deixou de ser um mal relacionado a homossexuais, travestis, prostitutas e viciados em drogas. A doença entrou na casa dos brasileiros e está contaminando mães e esposas. Em 1985, existia uma mulher contaminada para cada grupo de 25 homens. Hoje, a relação é de uma mulher para dois homens. Entre as casadas, a doença tomou contornos alarmantes nos últimos anos. Desde 1995 caiu o número de contaminações anuais por HIV de homossexuais (-16%), usuários de drogas injetáveis (-18%) e receptores de transfusão de sangue (-38%). Entre as mulheres contaminadas por relação sexual, no entanto, o crescimento foi de 14%. No ano passado, segundo dados preliminares, 14500 pessoas foram infectadas no Brasil, sendo 4300 do sexo feminino. Feitas as contas, são doze mulheres contaminadas todos os dias, oito delas em relações monogâmicas. Vitimar mulheres casadas e monogâmicas é enterrar definitivamente o conceito de "grupo de risco" para definir as pessoas mais expostas ao HIV.
Seria menos perturbador se a pesquisa da Universidade de São Paulo descobrisse que aquele grupo de mulheres "casadas" contaminadas, os tais 71%, tivesse feito alguma coisa errada, tivesse dado algum passo em falso, não tivesse resistido a uma compreensível aventura fora do casamento depois de tantos anos fazendo sexo com o mesmo homem. Mas não. Tudo indica que elas só se relacionavam com o marido. Também seria menos perturbador para as demais mulheres se a pesquisa apontasse um traço qualquer de perfil ou de personalidade que as distinguisse das não contaminadas, mas isso não aconteceu. Elas não são diferentes de ninguém. A maioria possui emprego, aposentadoria ou ganha dinheiro no mercado informal. Mais de 12% freqüentaram a universidade, um índice acima da média nacional. A idade das contaminadas é em torno de 32 anos. Elas têm em média dois filhos. O erro delas? Confiaram nos maridos e namorados e faziam sexo sem preservativo. É um dado longe da realidade?
Aguardem cotinuação da reportagem...
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