'Entre quatro paredes'
Porte de atleta, imensos olhos azuis, cosmopolita, elegante e segura de si. Um mulherão, aos 59 anos de idade. Assim é Maria. Executiva da área de comunicação, acha importante relatar o que foi seu casamento de catorze anos e dois filhos com um alcoólatra. Milhões de brasileiros podem estar passando por um ou outro momento semelhante. No seu caso, a desagregação emocional, física, psicológica, moral e financeira foi de uma família de alta classe média. Filha de conceituado médico do Rio de Janeiro e educada no colégio Sion, Maria casou virgem, aos 18 anos, arrebatada por um engenheiro de 22, sedutor e viajado, que entendia de Europa, gastronomia e vinhos - nada a ver com os jovens cariocas daqueles anos 50. O casal saía muito, tomava pilequinho junto, nada de mais.
Aos três meses de casada, percebi que havia alguma coisa de errado: tínhamos ido a uma festa num desses apartamentos de luxo da Avenida Atlântica e ele tomou um porre de cair no salão. Me senti terrivelmente sozinha e insegura. Também ensaiou uma primeira violência comigo, verbal. Lembro que era um fim de semana, assustei-me e arrumei as malas. Ele ficou aterrado, pediu desculpas, fez juras, me amou, e acabei ficando. Essa seqüência se repetiria mais adiante. Alguns meses depois engravidei, tive meu primeiro filho, logo em seguida veio o segundo, e meu marido pareceu acalmar-se. Bebia muito, como todos os nossos amigos da época, mas sem maiores comprometimentos para sua ascensão econômica no ramo da indústria auto-motiva. Passamos a ter um padrão de vida muito alto.
A primeira vez em que me bateu tínhamos uns seis, sete anos de casados - os meninos estavam com 4 e 5 anos de idade. Tínhamos ido a mais uma festa, ele bebeu pesado e na volta para casa se descontrolou. Era um homem forte, sabia bater, e passei a ter medo físico dele. Mas só quando estávamos em casa. Em público, era o talentoso empresário de sempre. Tanto assim que, quando eu entrei naquela fase de dizer ‘você já bebeu muito’ e tirar a garrafa de perto dele, os amigos me censuravam. ‘Ele não está fazendo mal a ninguém’, diziam, ‘larga do pé dele.’ Ninguém sabia o que acontecia entre nossas quatro paredes. Nem meu pai nem minha mãe. Como contar a um pai que a adora que você apanha do marido? Também usei de todos os artifícios para que meus filhos não pressentissem a violência. É claro que percebiam que havia muita coisa errada na nossa relação. Estavam habituados ao comportamento não linear do pai, que tanto podia dar-lhes um safanão e ameaçar uma surra de cinto quanto, dez minutos depois, ajoelhar-se e pedir desculpas. Eu vivia nervosa. Comecei a fazer análise.
No dia de seu 33º aniversário - onze anos de casados - preparei uma festa-surpresa. Foi um pesadelo. Ele bebeu, se vomitou todo, foi verbal-mente muito abusivo e me senti como no terceiro mês do nosso casamento: terrivelmente sozinha e humilhada. Insisti em quartos separados. Naturalmente, nossa vida sexual já tinha se esgotado havia muito tempo. Eu não suportava mais o cheiro de bebida. E quando ele caía na cama, caía mesmo. Não se furtava a me dizer que eu não servia ‘nem’ para fazer sexo. Ferida, certa vez rebati: ‘Podemos fazer um acordo pelo qual você vem ao meu quarto, eu abro as pernas, pego meu livro e você resolve o seu problema. Ou você quer ter-me inteira, numa relação de verdade?’ Pela primeira vez, depois daquele aniversário, ele se internou durante uma semana no Hospital Silvestre. Voltou desinchado, mais magro, mais amigo. Foi um dos melhores períodos que tivemos - ele deixou de beber por uns seis meses. Daí a esperança de que parasse. Fizemos uma ótima viagem à Europa e não tocávamos no assunto. Aliás, como é comum a alcoólatras, não se consegue conversar com eles. O bate-papo solto, descompromissado, fluido, não existe.
Na volta da viagem houve recaídas, mas, como ele conseguia parar uma semana, um mês, dois meses, eu achava que ele tinha o controle do seu alcoolismo. A chave está aí: querer acreditar que vai melhorar, que é só uma fase. O dia da minha última surra foi um sábado. Os meninos tinham ido ao Maracanã com o avô para ver o Botafogo e só voltariam no dia seguinte. Nessa noite, saímos para um compromisso social, no qual ele tomou três garrafas de Bourbon. Entrou no carro com uma aparência horrível, xingando-me pesado. Logo que alcançamos o elevador de nosso edifício, ameaçou me bater. Pela primeira vez em nossa relação eu reagi. ‘Nossos filhos não estão em casa. Se você tocar um dedo em mim, hoje, eu te mato.’ Fui para o meu quarto, comecei a tirar a roupa e não o vi entrar. Só senti o impacto do cinto nas minhas costas. Meu primeiro pavor foi cair no chão e levar um chute, algo assim. Consegui agarrar uma ânfora de ágata e comecei a golpear às cegas. Tive muita sorte de não tê-lo matado, acertando-o na têmpora. Com o homem que me havia arrebatado catorze anos atrás caído como um saco, em cima de um sofá, telefonei para o meu advogado. O desquite foi rápido.
Uma coisa para mim ficou absolutamente clara: se você abaixa a cabeça é muito pior. Enquanto você é paternalista, enquanto camufla, enquanto você se culpa por alguma participação no processo, você afunda junto. Ainda me lembro do pavor, logo após a nossa separação, de que ele refizesse a sua vida ao lado de uma mulher do mesmo nível sócio-cultural que eu, e deixasse de beber! Isso comprovaria, de forma definitiva, que a culpa de tudo tinha sido minha. Hoje, passados quase vinte anos, noto que ele continua cheirando a álcool - estivemos juntos recentemente, no batizado do nosso neto. Olho para ele com pesar. Meus filhos estão com 34 e 35 anos de idade, e ainda entro em pânico quando vejo um deles com um copo na mão. Não vigio, mas eles sabem que dói.
Fonte: Reportagem Revista Veja
Porte de atleta, imensos olhos azuis, cosmopolita, elegante e segura de si. Um mulherão, aos 59 anos de idade. Assim é Maria. Executiva da área de comunicação, acha importante relatar o que foi seu casamento de catorze anos e dois filhos com um alcoólatra. Milhões de brasileiros podem estar passando por um ou outro momento semelhante. No seu caso, a desagregação emocional, física, psicológica, moral e financeira foi de uma família de alta classe média. Filha de conceituado médico do Rio de Janeiro e educada no colégio Sion, Maria casou virgem, aos 18 anos, arrebatada por um engenheiro de 22, sedutor e viajado, que entendia de Europa, gastronomia e vinhos - nada a ver com os jovens cariocas daqueles anos 50. O casal saía muito, tomava pilequinho junto, nada de mais.
Aos três meses de casada, percebi que havia alguma coisa de errado: tínhamos ido a uma festa num desses apartamentos de luxo da Avenida Atlântica e ele tomou um porre de cair no salão. Me senti terrivelmente sozinha e insegura. Também ensaiou uma primeira violência comigo, verbal. Lembro que era um fim de semana, assustei-me e arrumei as malas. Ele ficou aterrado, pediu desculpas, fez juras, me amou, e acabei ficando. Essa seqüência se repetiria mais adiante. Alguns meses depois engravidei, tive meu primeiro filho, logo em seguida veio o segundo, e meu marido pareceu acalmar-se. Bebia muito, como todos os nossos amigos da época, mas sem maiores comprometimentos para sua ascensão econômica no ramo da indústria auto-motiva. Passamos a ter um padrão de vida muito alto.
A primeira vez em que me bateu tínhamos uns seis, sete anos de casados - os meninos estavam com 4 e 5 anos de idade. Tínhamos ido a mais uma festa, ele bebeu pesado e na volta para casa se descontrolou. Era um homem forte, sabia bater, e passei a ter medo físico dele. Mas só quando estávamos em casa. Em público, era o talentoso empresário de sempre. Tanto assim que, quando eu entrei naquela fase de dizer ‘você já bebeu muito’ e tirar a garrafa de perto dele, os amigos me censuravam. ‘Ele não está fazendo mal a ninguém’, diziam, ‘larga do pé dele.’ Ninguém sabia o que acontecia entre nossas quatro paredes. Nem meu pai nem minha mãe. Como contar a um pai que a adora que você apanha do marido? Também usei de todos os artifícios para que meus filhos não pressentissem a violência. É claro que percebiam que havia muita coisa errada na nossa relação. Estavam habituados ao comportamento não linear do pai, que tanto podia dar-lhes um safanão e ameaçar uma surra de cinto quanto, dez minutos depois, ajoelhar-se e pedir desculpas. Eu vivia nervosa. Comecei a fazer análise.
No dia de seu 33º aniversário - onze anos de casados - preparei uma festa-surpresa. Foi um pesadelo. Ele bebeu, se vomitou todo, foi verbal-mente muito abusivo e me senti como no terceiro mês do nosso casamento: terrivelmente sozinha e humilhada. Insisti em quartos separados. Naturalmente, nossa vida sexual já tinha se esgotado havia muito tempo. Eu não suportava mais o cheiro de bebida. E quando ele caía na cama, caía mesmo. Não se furtava a me dizer que eu não servia ‘nem’ para fazer sexo. Ferida, certa vez rebati: ‘Podemos fazer um acordo pelo qual você vem ao meu quarto, eu abro as pernas, pego meu livro e você resolve o seu problema. Ou você quer ter-me inteira, numa relação de verdade?’ Pela primeira vez, depois daquele aniversário, ele se internou durante uma semana no Hospital Silvestre. Voltou desinchado, mais magro, mais amigo. Foi um dos melhores períodos que tivemos - ele deixou de beber por uns seis meses. Daí a esperança de que parasse. Fizemos uma ótima viagem à Europa e não tocávamos no assunto. Aliás, como é comum a alcoólatras, não se consegue conversar com eles. O bate-papo solto, descompromissado, fluido, não existe.
Na volta da viagem houve recaídas, mas, como ele conseguia parar uma semana, um mês, dois meses, eu achava que ele tinha o controle do seu alcoolismo. A chave está aí: querer acreditar que vai melhorar, que é só uma fase. O dia da minha última surra foi um sábado. Os meninos tinham ido ao Maracanã com o avô para ver o Botafogo e só voltariam no dia seguinte. Nessa noite, saímos para um compromisso social, no qual ele tomou três garrafas de Bourbon. Entrou no carro com uma aparência horrível, xingando-me pesado. Logo que alcançamos o elevador de nosso edifício, ameaçou me bater. Pela primeira vez em nossa relação eu reagi. ‘Nossos filhos não estão em casa. Se você tocar um dedo em mim, hoje, eu te mato.’ Fui para o meu quarto, comecei a tirar a roupa e não o vi entrar. Só senti o impacto do cinto nas minhas costas. Meu primeiro pavor foi cair no chão e levar um chute, algo assim. Consegui agarrar uma ânfora de ágata e comecei a golpear às cegas. Tive muita sorte de não tê-lo matado, acertando-o na têmpora. Com o homem que me havia arrebatado catorze anos atrás caído como um saco, em cima de um sofá, telefonei para o meu advogado. O desquite foi rápido.
Uma coisa para mim ficou absolutamente clara: se você abaixa a cabeça é muito pior. Enquanto você é paternalista, enquanto camufla, enquanto você se culpa por alguma participação no processo, você afunda junto. Ainda me lembro do pavor, logo após a nossa separação, de que ele refizesse a sua vida ao lado de uma mulher do mesmo nível sócio-cultural que eu, e deixasse de beber! Isso comprovaria, de forma definitiva, que a culpa de tudo tinha sido minha. Hoje, passados quase vinte anos, noto que ele continua cheirando a álcool - estivemos juntos recentemente, no batizado do nosso neto. Olho para ele com pesar. Meus filhos estão com 34 e 35 anos de idade, e ainda entro em pânico quando vejo um deles com um copo na mão. Não vigio, mas eles sabem que dói.
Fonte: Reportagem Revista Veja
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